Rev Cuid. 2022; 13(3): e1175
http://dx.doi.org/10.15649/cuidarte.1175

 

RESEARCH ARTICLE

 

Acesso e aguardo pela estomização segundo pessoas com câncer colorretal: estudo etnográfico

 

Access and waiting for ostomy according to people with colorectal cancer: an ethnographic study

 

Acceso y espera para la ostomía según las personas con cáncer colorrectal: un estudio etnográfico

Antonio Jorge Silva Correa Júnior1Thaís Cristina Flexa Souza2Mary Elizabeth de Santana3Helena Megumi Sonobe4 Ingrid Magali de Souza Pimentel5 Jacira Nunes Carvalho6

 

 

  1. Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – USP. Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. E-mail: juniorjorge_94@hotmail.com Autor de correspondencia
  2. Universidade Federal do Pará – UFPA. Belém, Pará, Brasil. E-mail:thaisflexxa@gmail.com
  3. Universidade Federal do Pará – UFPA. Belém, Pará, Brasil.. E-mail: marybete@ufpa.br   
  4. Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – USP. Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. E-mail:megumi@eerp.usp.br
  5. Universidade do Estado do Pará – UEPA. Belém, Pará, Brasil. E-mail:imbarleta@yahoo.com.br
  6. Universidade do Estado do Pará – UEPA. Belém, Pará, Brasil. E-mail:jacirancarvalho@gmail.com


Highlights:

  • Os sinais e sintomas (frequentemente não conclusivos) marcam a fronteira da normalidade e anormalidade e início das histórias contadas, suscitando uma crescente dependência de discursos e instâncias biomédicas.
  • As pequenas narrativas ancoradas ao método etnográfico permitiram aos depoentes refletirem sobre uma cultura preventiva e de cuidados a saúde fragilizadas.
  • Tensões como o sentido "paguei no particular" e a mobilização de uma rede informal para agilizar o atendimento modelam o acesso e o descrédito quanto ao sistema público.
  • Ante as narrativas de acesso e aguardo de pessoas com câncer colorretal, interpretou-se a perda do processo de "paciência-resiliência", com deterioração da primeira e aspiração á segunda.

 

Recebido: 5 de abril de 2020
Aceito: 29 de junho de 2022
Publicado: 10 de outubro de 2022

 

Como citar este artigo: Correa Júnior, Antonio Jorge Silva; Souza, Thaís Cristina Flexa; de Santana, Mary Elizabeth; Sonobe, Helena Megumi; Pimentel, Ingrid Magali de Souza; Carvalho, Jacira Nunes.  Acesso e aguardo pela estomização segundo pessoas com câncer colorretal: estudo etnográfico. Revista Cuidarte. 2022;13(3):e1175. http://dx.doi.org/10.15649/cuidarte.1175       


  E-ISSN: 2346-3414

 


Resumo

 

 

Objetivo: Conhecer o acesso e aguardo pela estomização de pessoas adoecidas por câncer colorretal no nível terciário do Sistema Único de Saúde. Materiais e Métodos: Estudo etnográfico fundamentado na Sociologia da Saúde, com 8 familiares e 14 adoecidos em Centro de Alta Complexidade em Oncologia, Brasil. Os dados foram coletados entre outubro de 2018 a março de 2019, com observação participante e não participante, registro em diário de campo e entrevista semiestruturada. Os depoimentos e notas etnográficas após triangulação foram submetidos a análise indutiva de conteúdo em seis etapas. Resultados: Apreenderam-se “A história do adoecimento entrecortada pelas dificuldades” e “As perdas no processo de paciência-resiliência no percurso”. Discussão: Em busca de validações biomédicas foram reportados três tipos de acesso ao sistema médico, assim como os subsentidos “paguei no particular” e atraso diagnóstico mobilizaram via oficial e não oficial no Sistema Único de Saúde. O capital social foi analisado como premente no adoecimento, uma rede de contatos sem a qual o acesso dos usuários é impactado. No nível terciário enquanto aguardam pela estomização desvelou-se a resiliência não como recurso heroico, mas como recurso pessoal e coletivo diante do percurso dificultoso e da semi-reclusão na instituição total onde vivenciam medos, fadiga e dores. Conclusão:O acesso contou com mobilização relacional e uma gama de vias até a internação com parte do percurso na saúde suplementar, já o aguardo pela estomização mitiga a paciência ao passo que torna a resiliência um recurso benéfico na espera pela programação cirúrgica.

Palavras-Chave: Neoplasias Colorretais; Acesso aos Serviços de Saúde; Sistema Único de Saúde; Medicalização; Sociologia Médica.

 


Abstract

 

Introduction: The access of people with colorectal cancer to surgical treatment with stomization implies a difficult itinerary through the network of care, and when accessing the tertiary level in an apprehensive preoperative waiting. Objetive: To know the access and waiting for stomization of people sick with colorectal cancer at the tertiary level of the Brazilian Unified Health System. Materials and Methods:Ethnographic study based on the Sociology of Health, with 8 relatives and 14 patients in a High Complexity Oncology Center, Brazil. Data were collected between October 2018 to March 2019, with participant and non-participant observation, field diary recording, and semi-structured interview. Statements and ethnographic notes after triangulation were subjected to inductive content analysis in six steps. Results:"The history of illness interspersed with difficulties" and "The losses in the process of patience-resilience along the way" were apprehended. Discussion: Three types of access were reported, as well as the sub-meanings "I paid privately" and the diagnostic delay mobilized by official and unofficial means in the Unified Health System. Social capital is pressing, a network without which users' access is impacted. At the tertiary level while waiting for stomization, resilience was unveiled not as a heroic resource, but as a personal and collective resource. Conclusion: The access counted on relational mobilization and a range of paths to hospitalization with part of the journey in supplementary health, while the waiting for stomization mitigates patience making resilience a beneficial resource in the wait for surgical programming.

Key words:Colorectal Neoplasms; Health Services Accessibility; Unified Health System; Medicalization; Sociology, Medical.

 


Resumen

 

Introducción: El acceso de las personas con cáncer colorrectal al tratamiento quirúrgico con estomización implica un difícil itinerario a través de la red asistencial, y al acceder al nivel terciario en una aprensiva espera preoperatoria. Objetivo: Conocer el acceso y el aguante de las personas afectadas por el cáncer colorrectal en el nivel terciario del Sistema Único de Salud. Materiales y Métodos: Estudio etnográfico basado en la Sociología de la Salud, con 8 familiares y 14 pacientes en Centro Oncológico de Alta Complejidad, Brasil. Los datos se recogieron entre octubre de 2018 y marzo de 2019, con observación participante y no participante, registro de diario de campo y entrevista semiestructurada. Los testimonios y las notas etnográficas, tras la triangulación, se sometieron a un análisis de contenido inductivo en seis etapas. Resultados: Se aprende "La historia del adoctrinamiento entrecortado por las dificultades" y "Las pérdidas en el proceso de pacificación-resiliencia en el curso". Discusión: Se reportaron tres tipos de acceso, así como los subsentidos "pagué en el privado" y el atraso diagnóstico se movilizaron vía oficial y no oficial en el Sistema Único de Salud. El capital social es apremiante, una red de contactos sin la cual el acceso de los usuarios se ve afectado. En el nivel terciario, mientras aguantan por la estomatología, la resistencia se revela no como un recurso heroico, sino como un recurso personal y colectivo. Conclusión: El acceso a la movilización relacional y a una gama de vías hasta la internación con parte del curso en la salud suplementaria, ya que la espera por la estomización mitiga la pacificación haciendo de la resiliencia un recurso benéfico en la espera por el programa quirúrgico.

Palabras Clave: Neoplasias Colorrectales; Accesibilidad a los Servicios de Salud; Sistema Único de Salud; Medicalización; Sociología Médica.

 


Introdução 

A política de atenção oncológica brasileira busca garantir o acesso a serviços especializados e de alta complexidade, estabelecendo critérios para os serviços desta natureza no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) intimamente ligados ao modelo de atenção à saúde que passou a ser estruturado a partir de 2011. Entretanto, sobreleva-se que a fragilidade desta integração culminando em um acesso demorado ao nível terciário1.

A conhecida demora implica em um aumento significativo, especialmente entre os homens, da incidência de câncer colorretal (CCR) e por conseguinte da mortalidade, como já está sendo documentado nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, sabendo que nacionalmente estima-se para cada um dos anos de 2020, 2021 e 2022 a frequência anual de 20.520 casos de câncer de cólon e reto em homens e 20.470 em mulheres2,3. Por conseguinte a descoberta dos sintomas é elemento crucial4,5, e a persistência dos mesmos conclama que o diagnóstico e encaminhamento sejam depreendidos.

Neste bojo, são sintomas importantes a dor abdominal, hematoquezia, melena, dor nas costas, perda de peso, urgência fecal, constipação e/ou diarreia, contando com períodos prolongados até validarem-nos com médicos, que fazem com que usuários os esqueçam ou minimizem-nos caso diminuam de intensidade e frequência. Assim, pessoas com CCR necessitarão de exames confirmatórios como colonoscopia, consultas referenciadas devido as medicações prescritas, um acompanhante familiar ou não, alimentação, moradia próxima ao tratamento e frequentemente vivenciam situações domiciliares difíceis6,7 devido a consequente mobilização de capacidades financeiras e mecanismos sociais.

Portanto, acessar os níveis de atenção para tratamento cirúrgico para tumores sólidos e confecção de estomia, depende tanto da postura do adoecido oncológico, das Centrais de Regulação e peculiaridades da região de saúde na qual está inserido com residência fixa ou não. O itinerário começa em Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou na atenção de média complexidade, para então o usuário ser regulado via SUS para a alta complexidade, evidentemente a exiguidade de serviços desta natureza faz com que usuários com câncer no do trato digestivo se desloquem para regiões metropolitanas ou cidades de grande porte a fim de efetuar o tratamento. Na oncologia as interfaces entre os níveis no SUS se dão em fluxos para regiões com a maior concentração de serviços de alta complexidade, de forma piramidal, porém mesmo assim os usuários traçam fluxos não oficiais de acesso7.

Desta maneira, ouvir acerca do percurso de pessoas narrando transições na rede em um serviço de alta complexidade no qual aguardam a cirurgia com estomização, permite compreender o acesso ao tratamento e ainda as experiências produzidas na internação. Considera-se o lugar de escuta no nível terciário de atenção como valioso, pois a rede de relações das pessoas que buscam atendimento e tratamento no meio urbano é densa e são raríssimos os casos de pessoas que perdurem sem elas8. Estudos com a fundamentação sociológica exploram a tendência de humanização, subsistemas e itinerário até o sistema profissional-biomédico4,5.

Consequentemente, são objetos da Sociologia da Saúde a explicação da mobilização de capacidades após o adoecimento, territorialização física ou social e experiência corporal9. Alguns de seus conceitos constituintes são: medicalização com a constante de validações médicas e não médicas do adoecimento10, institucionalização cultural e “instituições totais” defendidas por Erving Goffman11 como aqueles locais de internação passageira ou não (hospitais psiquiátricos, asilos, prisões e conventos), reclusão ou semi-reclusão com: autoridade, rotinas agendadas, equipe dirigente e redes de resiliência coletivas.

Seguindo o exposto o problema de investigação foi: Quais as narrativas de acesso e de aguardo pela estomização de pessoas adoecidas por câncer colorretal no nível terciário? E diante disto, o objetivo foi conhecer o acesso e aguardo pela estomização de pessoas adoecidas por câncer colorretal no nível terciário do Sistema Único de Saúde.

Materiais e Métodos

Estudo etnográfico assentado no paradigma compreensivo-interpretativo da Sociologia da Saúde. A Sociologia é interativa gerando impactos na política de saúde, humanização de serviços e descortina experiências, prevê a conexão reflexiva dos conhecimentos da biologia, humanas e educação. Transcende-se a explicação apenas da doença e averíguam-se os sentidos (sentimentos), considerando que as pessoas dispõem de relações materiais (naturais e culturais) considerando múltiplas vinculações do contexto de adoecimento9,12. Neste contexto, um protocolo de pesquisa etnográfica foi pensado a partir do Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ)13, elaborado por pesquisadores com experiência em pesquisa qualitativa e publicações na área, destacando-se no tocante ao “Relacionamento com participantes” o tempo de interação de 5 dias até no máximo 1 mês de contato com os internados no aguardo da programação cirúrgica, e contato único para aqueles ambulatoriais.

Nas relações de usuário-familiar-equipe existem agentes de poder simbólico estrutural (dominados-dominantes) expressos na rede de atenção, comportamentos alicerçados por padrões de poder nas instituições expressos durante a internação, equivalendo portanto a um campo profícuo para estudar valores do senso comum, alianças-rupturas institucionais, lutas, paradigmas de gestão e ainda de violência simbólica perpetrada pelo sistema9,12. Para abranger singularidades vivenciadas no processo de ver-se estomizado após uma transição de níveis de atenção, a sociologia focaliza a contextura de indivíduos dependentes uns dos outros subsistindo pela unidade de suas funções sendo a ciência das funções societárias8.

A coleta desenvolveu-se em dois cenários de Centro de Alta Complexidade em Oncologia (CACON) na região metropolitana de Belém, estado do Pará, Brasil, na clínica cirúrgica oncológica abdominal e ambulatório antineoplásico. Assevera-se que além da oncologia o CACON comporta dezessete especialidades, entre elas neurocirurgia, transplantes de córnea e rins. A instituição é uma autarquia e hospital de ensino referência em serviços médico-hospitalares de alta complexidade para a população oriunda da região Norte do Brasil e, incluso algumas cidades do Nordeste, o acesso oficial a mesma dá-se após referência dada a confirmação diagnóstica e a internação por meio dos Sistemas de Regulação (SISREG) e Sistema Estadual de Regulação (SER).

Logo, a seleção de participantes primários foi de adoecidos pelo CCR em tratamento cirúrgico com estomização, residentes temporariamente ou permanentemente na região metropolitana de Belém e maiores de 18 anos, sendo o maior Índice de Desenvolvimento Humano dos municípios de procedência dos depoentes de 0,768 (São Luís no estado do Maranhão) e o menor 0,515 (Viseu no estado do Pará) na consulta ao Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil com dados do último censo populacional14; excluíram-se os que regressaram sem estomização do centro cirúrgico devido ao protocolo de pesquisa contemplar o aguardo e retorno com estomização para emersão de sentidos específicos. Desta forma considerou-se o binômio paciente-familiar após um trabalho de campo de dois meses, pois dificuldades de coleta foram apreendidas e a inclusão do familiar como participante secundário consistia como um benefício após anuência do adoecido. Foram fontes de dados 22 pessoas, esclarecendo: entrevistas e contatos com oito binômios adoecido-familiar (16 pessoas) e com seis adoecidos respondentes sem a necessidade de ajuda.

Seguindo o protocolo obedeceu-se: descrição em diário de campo de eventos de uma fase inicial até um desfecho; registro das interpretações em notas etnográficas operacionais, metodológicas e teóricas – compostas pela data e lista de participantes renovada com admissões e altas e eventos observados (palavras-chave, descrição cronológica, interpretações e apontamentos para o próximo encontro). Sendo registradas imediatamente após a saída da enfermaria no posto de enfermagem. As técnicas empregadas foram observação participante, não participante e a entrevista semiestruturada do tipo interpretativa15, a observação participante atendeu a descrição ordenada e solicitação de narrativas.

As etapas da coleta de dados desenvolvida pelo primeiro autor (enfermeiro), perduraram de outubro de 2018 a março de 2019 com: 1) aproximação dos binômios na admissão, registrando o semblante, conhecimento sobre a doença e experiência não verbal nas enfermarias. Somente no trabalho campo foi especificado o que poderia ser apreendido, registrado e replicado; 2) observação não participante na Clínica Cirúrgica e no ambulatório para identificar a dinâmica, organização e rotina (rituais); 3) observação participante, entrevista em profundidade próxima a alta da clínica e uso de diário de campo anotando informações relevantes, nexos entre as observações e conceptualizações em notas.

Ao final durante o pós-operatório as perguntas sobre determinantes do acesso e do aguardo na internação, levando em conta a produção de dados anterior a qual engajou observação centrada no olhar e em todos os sentidos, foram: Como conseguiu a internação?; O que este hospital significa para você?; O que lhe ajuda a permanecer aqui?; Tem alguma dificuldade aqui?; Quais profissionais tem vindo lhe orientar?; Como o senhor(a) tem sido tratado(a)?. Estas começaram a ser aplicadas sempre ao final da produção de dados e após um teste piloto de uma semana direcionado aos usuários com CCR admitidos no CACON, no início da inserção do pesquisador no cenário, as questões foram pensadas unicamente para o nível de atenção terciária.

Tais entrevistas foram áudio-gravadas e convertidas em formato MP3. A triangulação aconteceu entre notas etnográficas e entrevistas transcritas na íntegra sendo procedimento indispensável além do retorno do material transcrito para os participantes oferecerem feedbacks. Assomaram-se também dados obtidos na clínica cirúrgica e no ambulatório antineoplásico: 1) notas referentes ao pré-operatório trianguladas subsequentemente a entrevista semiestruturada no pós-operatório gerando um arquivo Microsoft Word para cada paciente e/ou binômio; 2) notas dos abordados e observados no pré-operatório, porém não entrevistados, foram agrupadas em arquivo Microsoft Word, amparando conceptualizações. Em conformidade com a ciência aberta, os dados das entrevistas usados para o relatório geral preservando a confidencialidade estão disponíveis para consulta pública em Data-set16.

A análise de similitudes e de distinção foi depreendida com codificação de temas em um arquivo matriz nas etapas: 1) familiarização com os dados – a etnografia permitiu ao pesquisador explorar os pontos críticos das entrevistas transcritas, com solicitação de novas narrativas com o decorrer dos contatos; 2) geração de categorias – codificação sistemática de características concretas dos fatos também amparada pelo diário de campo; 3) geração de unidades para comportar as categorias por proximidade temática; 4) interpretação; 5) nomes para os temas das categorias; 6) relatório17. O relatório foi apresentado na dissertação de mestrado “Os sentidos do adoecimento pelo câncer colorretal: estudo etnográfico”, esta pesquisa é oriunda da unidade “Os sentidos do acesso”.

Como cuidado ético empregou-se o código alfanumérico P1-P11 para pacientes, PA12-PA13 para pacientes ambulatoriais, F1-F7 para familiares e FA8 para familiar do ambulatório. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido. A coleta depreendeu-se após a aprovação por dois Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Pará e da instituição, respectivamente Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) 90503818.8.0000.0018 e CAAE 90503818.8.3001.5550.

Resultados 

A amostra foi de quatorze adoecidos e oito familiares. Apenas relação aos adoecidos, sete homens e sete mulheres com ocupações como: aposentados, donas de casa, agricultores, um mecânico, uma auxiliar de serviços gerais, um garimpeiro e uma freira, suas procedências: Belém, Barcarena, Canaã dos Carajás, Capanema, Igarapé-Açu, Igarapé-Miri, Mãe do Rio, Maracanã, Viseu, Parnaíba no Piauí e São Luís (cidade do nordeste brasileiro no estado do Maranhão). A totalidade dispunha somente do SUS como sistema de cuidado à saúde, do diagnóstico até a internação o período de tempo decorrido foi: menos de 3 meses para quatro participantes (28,56%), entre 3 meses–1 ano para cinco (35,70%), entre 1 ano–2 anos para um participante (7,14%) e 2 anos ou mais para 4 participantes (28,56%).

Durante o percurso na clínica a coleta de dados foi marcada pela ausência de estomização devido à anastomose no bloco cirúrgico, estadiamento avançado sem indicações terapêuticas, reabordagens e óbito no Centro de Terapia Intensiva. Com o processo de análise da unidade “Os sentidos do acesso” as categorias de sentidos a seguir foram elaboradas.

A história do adoecimento entrecortada pelas dificuldades

A anormalidade é detectada e o percurso iniciado com compartilhamento com sistema de cuidado informal e depois o biomédico. Todo percurso é sintetizado pela Figura1.

Apresentou o sangramento [retal]. Começou com uma prisão de ventre, tinha o intestino regular, de repente evoluiu para uma diarreia líquida branca, sem nada de fezes. Foi se desidratando e esperou para fazer a colo, e foi descoberto que tinha alguma coisa. Aí foi para biópsia e encaminharam. (Síntese F1, F7, FA8)

Os outros médicos tratavam como hemorroidas, como eu não podia fazer nenhum procedimento por causa da gravidez tive de ganhar o bebê. Foram quinze dias depois da cesárea que eu fiz a colonoscopia e com um mês fiz a cirurgia. (PA13)

“É hemorroidas”, passou um ano e fomos para outro “É hemorroidas”. O terceiro médico eu disse: “Sinto latejar” e fez o toque. Me mandou para outro médico e deu uma secreção no vidro pra eu fazer no laboratório, chegou 10 dias e deu que era um tumor maligno [diário de campo: esses exames foram por onde? ] Foi particular. (PA12)

Refletem sobre a falta de uma cultura preventiva de cuidados à saúde.

Eu corria no laboratório fazer o exame particular rápido, pagando achava que já estava curado. Uma vez o técnico me mostrou “Olha tem uma diferença no teu ultrassom procura um especialista”. Só que eu como não sentia dor falava “Égua a gente vai no médico tá bonzinho, lá ele arruma um bocado de doença para gente”. Descobri assim diabetes e pressão alta, passava remédio eu tomava só um pouco, abandonava e ia para manguaça. No outro dia ia curtir a ressaca, meter a mão no bolso vazio. (P1)

“Bora no médico ver como tá sua saúde? ” ela dizia “Estou boa”. Quando resolveu ir para hospital chegava e dizia que estava com dor debaixo da costela, aplicavam um remédio para dor na emergência, um sorinho. Acabava ela dizia “Tô boa! ”. (F4)

Via o sangue, não me incomodei porque não doía. Um dia as meninas viram no papel e disseram “Vamos atrás de remédio! ”, “Qui! Não tá me doendo! ”. Em abril do ano retrasado eu fiz o meu trabalho [evacuações fecais], e quando terminou eu fui me limpar e tinha [diário de campo: mensura com a falange distal do dedo indicador]. Nunca tinha ido num hospital, com essa idade toda e é a minha primeira doença perigosa [diário de campo: de Viseu, 72 anos, nunca realizou Papanicolau ou mamografia]. (P5)

Durante um trabalho de campo de dois meses, pequenas narrativas de acesso ganham espaço com a dependência dos discursos médicos.

[...] pediram a bateria de exames, viram que tinha uma coisa errada e encaminharam. Tinha de ser rápido que a “coisa” já estava bem alarmante, foram todos particulares [diário de campo: médicos voluntários visitam o convento]. É bradicardica, tratou um pouco, fez uma consulta e já se internou esperando a cirurgia [diário de campo: nem chegou a fazer quimioterapia? ]. Não chegou, vai fazer quando ela já tiver bem. (F7)

Disse que eu ia fazer radioterapia, quimioterapia, cirurgia e depois radioterapia e quimioterapia de novo. “Eu vou lhe explicar: este é o seu reto [diário de campo: faz gesto de fechar as mãos encenando], aqui é o intestino, pense no ânus, o seu problema está aqui. Ele é muito em baixo e a radiação vai destruir o seu ânus. Infelizmente a senhora vai usar a bolsa permanente”. (P4)

Rapaz o médico me disse que essa quimio mata as células que ficaram, meu tumor era maligno solta umas células para outro órgão. A radio era para matar as dores. (PA12)

Residentes em outras localidades reclamam do deslocamento e as esposas (F2 e F6) colocam-se como adoecidas.

Fomos no especialista em oncologia. Já fomos para Castanhal, nós fizemos um bocado de exames de “bioquisia”. Foi descoberto. (F2)

Era muito difícil [quimioterapia e radioterapia]. Passou mal, estava na casa de um amigo e ia em pé no ônibus [diário de campo P7: fazia o trajeto de cerca de duas horas de onde estava instalado até Belém]. Vinha de manhã, 13 horas ele fazia a radioterapia e 16 horas fazia a quimioterapia, sentia muito enjoo. (F3)

A gente procurou o tratamento, o médico fez a colonoscopia e constatou o tumor, fez a biópsia constatou o câncer. Conseguimos o tratamento fora de domicílio e viemos para Belém, dentro de seis meses que tínhamos descoberto tudo. Então foi seis meses lá pro lado de Canaã [dos Carajás], ficamos internados 18 dias para fazer a cirurgia, o médico olhou e viu que o tumor estava grande e se fosse fazer a cirurgia ia ficar com deficiência e pediu para passar para quimio para reduzir. Tomou quimio dois anos, janeiro eles pediram [documentos] e a gente entregou. Então são oito meses da gente brigando. (F6)

O “paguei no particular” foi subsentido no tocante aos exames e consultas.

Pagamos um exame 800 reais e eu até pedi “Moça por favor deixa mais barato isso. ” aí ela disse “Não tem como senhora, o médico pediu com contraste. ”; Fazer o que né?. (F2)

Demora muito.... Para descobrir fez uns exames particulares. (Síntese F1, F3, F4 e F5) Eu penei muito para pode chegar. Não fiquei internada, foi fazendo exame, primeiro a gente pagou “unszinhos” até onde o dinheiro deu. O dinheiro terminou... (P5)

No posto me disseram: “Isso daí não é nada sério, deve ser uma hemorroida”. Voltei para casa e em nenhum momento eles me ajudaram ou me encaminharam, quando começou a sangrar paguei tudo particular: consulta e exames. (P6)

Tensões nos percursos mobilizam a rede de contatos para o acesso a Rede de Atenção à Saúde (RAS), como no extenso e marcante depoimento de P4 com mais medo da morosidade que do próprio câncer.

Em fevereiro de 2017 tapou minha passagem, parece que tinha uma cabeça de criança para sair e eu estava em viagem. Quando eu cheguei em casa foi saindo, eu fiquei uma manhã inteira no banheiro, aquele cocô preto saindo. Em fevereiro consegui com meu médico e em maio ele disse “A senhora vai fazer estes exames de sangue e uma colonoscopia. Bote seus documentos e deixe esse encaminhamento na secretaria. ” Final de maio e eu com estes sintomas todo dia. No final de junho eu volto lá: “Ainda não tá teu nome, espera que demora. ” Fui em julho para saber e era férias, corri atrás de um exame particular e encontrei de 600 e até de 800. Em agosto: “Dá teu papel de novo, porque no vento foi perdido. Bota xerox dos teus documentos. Eu vou pedir o encaminhamento para o doutor”. Liguei para uma prima e contei a situação, ela me arrumou uma consulta popular por 350 e estes sintomas pela parte da manhã ou da tarde. Uma lama horrível! Fiz a colonoscopia em setembro e a biópsia, câncer grau 2 e o doutor disse “Pegue esse encaminhamento. Não era esse resultado que eu queria lhe dar... A senhora corre ontem, pois esse câncer é agressivo. Pegue esse papel e deixe na secretaria. ” Não me deu medo da doença, mas me deu medo que perderam meu papel. Eu ia esperar tudo de novo? (P4)

Os profissionais recomendaram a via regular de acesso ao CACON.

Éramos leigos, não sabíamos. Ela [filha] trouxe a biópsia e conversou com a assistente social, começaram marcando a consulta e demorou mais dois meses. (F2)

Eu vim com as minhas filhas, uma que mora aqui e é mais inteligente e conhece por aí, foi se chegando, se chegando, e achou uma mulher aqui que levou ela e agilizou. (P5)

Fez uma consulta num posto de saúde e pediram para fazer os exames, depois o diagnóstico e encaminhamento. (Síntese P2, FA8 e PA12)

Primeiro eu participei para a família, fomos no posto e não tinha [atendimento]. Tivemos de pagar consulta, fazer a limpeza intestinal e depois que eu fiz voltei a evacuar normal, mas as dores permaneciam devido aos tumores. Onde a gente mora [Barcarena], quando acontece uma situação mais grave, os postos de saúde encaminham para a secretaria de saúde e analisam os casos. (PA13)

Uma alternativa para agilidade foi a rede de contatos para via de entrada não oficial.

Eu com meu filho ligamos para minha prima, ela disse “Vai lá com a K no [nome da instituição]” Com a amizade ela me colocou para dentro e conseguiu a consulta. (P4)

Conheceu uma amiga que era esposa de alguém de dentro, um conhecido, falou como era para ir e deu o caminho das pedras aqui dentro. Veio sozinho e ficava praticamente diariamente dentro deste hospital, se marcavam [ambulatório] ele ficava em pé, vinha cedinho e ficava. Quando desmarcavam ele ia encher o saco. (F3)

Conseguimos através de amigos, pois sozinhos nós não conseguiríamos [diário de campo: não quis dar mais detalhes]. (F6)

Através de uma menina que trabalha aqui descobrimos o doutor. Descobrimos o número, ligamos, e conseguimos uma consulta particular e depois ele nos transferiu para cá. (P9)

 

Figura 1. Percursos para o acesso até o aguardo pela estomização na atenção terciária

As perdas no processo de paciência-resiliência no percurso

Com a demora no aguardo da programação cirúrgica apreendeu-se a “perda do processo de paciência-resiliência”. A depoente F6 refere-se a espera e ao papel da APS.

Veio muito decaída e estava muito ansiosa para fazer imediatamente, todo dia que cancelasse era um século. Foi cancelada três vezes: a primeira por falta do sangue que é O -, a segunda por falta de UTI e a terceira o doutor passou mal. Quando foi a quarta tentativa que deu certo. Desmarcavam ela perdia a paciência, ficava decaída. (F4)

Não foi muito facinho não e ainda não está sendo! Você ficar mais de 30 dias com um doente é difícil e como acompanhante [diário de campo: se contém para não chorar], se tivesse mais um pouquinho de esforço talvez nós não teríamos ficado este tanto de tempo [diário de campo: no 23º dia de internação; P10 narrou no corredor durante uma de suas caminhadas que seu “problema anal” “migrou” para a uretra. Sua cirurgia precisou de um urologista; o motivo para a demora de 33 dias]. (F6)

Aguardar por exames complementares e as abordagens deterioram a paciência-resignação.

Primeiro contato diz: “A doença é uma coisa que tem de ser enfrentada”; verbalizando esperança e formas de enfrentamento. Segundo contato: Pede para não ser colocada a bolsa de colostomia. As instalações são criticadas, chama a atenção para o estado da rampa de acesso ao banheiro. Terceiro contato: Pede para registrar que demora muito. Verbaliza que o médico disse que ainda não a operou por falta de sangue: “Pensam que sou otária. Estou quase pra perder minha paciência e mandar... (expressão de baixo calão)!” (diário de campo: realizou anastomose, 23 dias de internação).

A instituição é lugar de espera que dá “informações aos pedaços”. (diário de campo P2) Ele diz ‘Mulher quando eu estou em casa... Eu fico disfarçando’ e aqui fica num cárcere, fica assim ‘Eu quero é ir mim bora, mim bora!’. (diário de campo F2 e P3)

Conciliam-se a perda da paciência-resiliência no pré-operatório: tenesmo retal, hematoquezia, melena, diarreia com muco e constante pressão classificada como “um vento”, fadiga, constipação contornada por medicações laxativas e as complicações da infusão da quimioterapia (“dor nas veias”). Com o retorno do CTI as náuseas e anasarca aglutinam-se, aprofundando a impaciência. Massagear o abdômen era indicativo para o afastamento, denotando um momento particular de vivência da dor restrita ao binômio.

Fala baixo. Fazem 18 dias de internação que visivelmente lhe esgotaram e a medicação não consegue controlar sua diarreia, impedindo-a de dormir. Conta sobre suas caminhadas e os minutos na capela. Pós-operatório: Anasarca persiste aliada a caquexia nos membros, entretanto diz estar calma apesar do calor da enfermaria provocar um desconforto visível. No 23º dia de internação veio a óbito. (diário de campo)

Decorridos 11 dias e já foi reabordado três vezes, percebo-o irritado. Refere plenitude gástrica, seu curativo está molhado apesar de ter sido trocado, seus membros edemaciados. “Tô com muitos gases! Como vou andar com tudo isso?” Diz para a enfermeira, apontando o suporte de medicação. (diário de campo P7)

Discussão 

As narrativas obviamente dependem dos discursos médicos e a vertente biomédica é reverenciada. A medicalização existente em verdades laboratoriais e de exames retroalimentadas em um ciclo que vai de usuários, médicos, meios de comunicação, indústria farmacêutica e cientistas10,18 transforma usuários em atores, cuja vida orbitará em torno de redes de assistência (médica) à saúde18. Influindo no percurso de acesso a resistência a deliberação médica e os medos, fazem com que alguns expressem falta de cuidados preventivos ou mesmo a busca por ajuda apenas nas Unidades de Pronto Atendimento (UPA).

Destarte, a partir dos sintomas buscam validações com a família e níveis de saúde informais e quando não há sucesso requisitam uma validação médica. Subjacente as validações sociais demoradas os mesmos são despojados do conhecimento sobre seus corpos e após a confirmação diagnóstica o as verdades médicas são centrais na construção do acesso18. Para aqueles que não residem na capital de um estado de dimensões notáveis possuir rede de apoio na capital é difícil, considerando-se a peregrinação e a construção de redes5.

Apreender a demora e termos como “atraso diagnóstico” estratificando intervalos de tempo, é fundamental para o debate. Esmiuçar casos individuais tem pouca valia, pois percebe-se que as causas da demora vão de encontro aos contextos sociais e temporais. Existem períodos aceitáveis de espera e outros nem tanto como nos casos de hematoquezia, assim três conceitos são cabíveis: de intervalo, contexto causador e de atraso inaceitavelmente prolongado19. O atraso foi imputado por parte dos participantes a uma APS frágil e pouco eficiente sem encaminhamentos ou, preocupantemente, atendimento humanizado, demonstrando o descrédito e suscitando: “rede de contatos”, “fluxo não oficial” e o “paguei no particular” como em outros estudos4,5.

Interpretar tais achados diligencia um panorama analítico menos unidimensional. Pondera-se que geralmente a atenção básica brasileira não apresenta condições infraestruturais para garantir a conexão aos demais níveis RAS. Para evitar a peregrinação20 um primeiro ponto a ser solucionado é dar reforço às regiões de saúde, plano de carreira profissional e dedicação exclusiva neste nível. Outro ditame econômico a ser considerado na realidade brasileira, é a crescente pressão orçamentária da atenção hospitalar e especializada afetando os repasses para a atenção municipal, ao contrário da experiência de outros países em relação a APS.

Este processo resvala no subsentido paguei no particular dando conta que por terem mobilizado recursos financeiros próprios, decerto não vinculam a saúde suplementar ou privada ao sistema público do qual a totalidade afirmou fazer uso. A expansão dos planos particulares no país é estimulada pelo fluxo crescente de pacientes do privado para o serviço público, fragmenta e concentra para os níveis genuinamente públicos procedimentos menos rentáveis e onerosos, considera-se que a maior parte dos hospitais brasileiros é privada mesmo que o acesso seja mediado majoritariamente via SUS suplementarmente21.

Portanto, um fluxo não oficial para acessar o sistema público foi desenhado por parcela dos participantes seja da saúde suplementar para o CACON ou mesmo na tentativa de entrada pela APS, depois exames pela saúde suplementar e por fim o CACON. Sendo mediados pela eficiência de uma rede de contatos fomentadora de apoio social para fins terapêuticos ou curativos: os fluxos não oficiais desenham-se e variam de acordo com a capacidade de cada indivíduo em dispor de bom capital social5. Apesar de voltados para a análise de redes rurais alguns trabalhos sociológicos22,23, abordam-no como micro configurações infraestruturais e culturais não distante das concepções normativas e estatais, o fracasso de um grupo ou comunidade ou a baixa resiliência de um sujeito derivam da ausência de capital social. Nas cidades existe sob a forma de vantagens infraestruturais, profissionais, rede de contatos e conexões afetivas institucionalizadas.

Conectado a longa sequência psicoemocional desgastante a categoria “As perdas no processo de paciência-resiliência no percurso”, foi narrada no aguardo pela estomização. As queixas vão de encontro ao tédio, “uma eterna cobrança dos médicos”, informações transmitidas e não assimiladas e “as mesmas coisas são ditas” como indícios da perda da paciência em uma instituição total como Erving Goffman tratava. Conjectura-se que estes sentidos são perdidos paulatinamente, porém os adoecidos não almejam perder a resiliência devido ao forte “poder subjetivo” da mesma. Inteira-se segundo definição geral da língua, que paciência é o tolerar dificuldades com paciência ou “aquilo que demora”24.

Enquanto resiliência orienta-se ao encontro de um estado pessoal e pouco institucional, o predicado que alguns corpos possuem de voltar a forma original após serem submetidos a deformações e provações, adaptando-se24. No presente estudo a esperança foi um recurso para que a perda da visão resiliente não ocorra, associando-se a esperança individual como em outra pesquisa para adoecidos com CCR25.

O conceito sociológico de resiliência26 é pertinente à arguição para perda de paciência como o apreendido. Para a sociologia a resiliência não é um atributo “heroico” inerente a determinado indivíduo, é uma ação processual e a ideia de comunidade é uma constante nesta quebra epistemológica, pois não a restringe ao despertar de uma faculdade individual e sim aprendizagem, gestão de ferramentas para recuperação e modos de conviver diante de processos de estresse social, desemprego e dependência prolongada de serviços públicos.

Os problemas da construção heroica – traumas absorvidos individualmente-familiarmente e soluções criativas são engendradas; tangem a predileção em construí-la como um recurso a pobreza e o etnocentrismo, frequentemente denotará as formas de enxergar a vida e solucionar problemas do próprio pesquisador, não ponderando que adaptações sempre ocorrerão enquanto os adoecidos estiverem vivos. Para as políticas públicas explorar o conceito heroico é negativo, leva ao aproveitamento de um recurso oculto, individual e grátis, sem averiguarem a autenticidade da socialização de determinantes em saúde, implicando em naturalizar tal característica para qualquer sujeito. O ônus é repassado para os sujeitos e não para a intervenção pública26.

Tais percas começam na gestão em saúde e macro política: subfinanciamento, não dimensionamento de algumas unidades para demanda espontânea, exclusividade para os agendamentos e a prática medica como o única responsável pelo acesso ao SUS21,27. A totalidade destas vicissitudes conhecidas pelo senso comum ativam os recursos ligados à resiliência coletiva (atores sociais amizades-parentes)26. Emprega-se o termo senso comum como sistema cultural, pois para os depoentes ligar a APS a um perfil desfavorável é uma interpretação da realidade imediata.

Apenas os recursos externos estressantes não são suficientes para explicar o processo de perca de paciência, três fatores intrínsecos foram apreendidos consistentemente: Fadiga fisiológica, a Dor e Semi-reclusão em uma instituição total. A fadiga oncológica intensifica-se com a quimioterapia, a fraqueza muscular periférica e respiratória, caquexia, deterioração do sono, repouso e disfunção do sistema nervoso28, pausando diálogos e suscitando aproximações sensíveis. Mesmo sem conclusões decisivas recente revisão sistemática29 aponta que os sobreviventes ao CCR devem ser estimulados após o tratamento à prática de atividades físicas com ou sem fadiga.

Outro elemento desafiador para a manutenção da paciência são as dores, com um forte condutor psicoemocional e comportamental, no qual influencias sociais-culturais e crenças espirituais e religiosas unem-se para administra-la em um ritual privado em alguns casos ou pedindo para que o pesquisador a testemunhasse como objeto concreto. A dor no câncer avançado segundo revisão sistemática com metanálise30 mesmo após o tratamento cirúrgico ou antineoplásico, será sentida na maioria dos casos.

Assevera-se que as instituições totais provocam uma crescente ansiedade e intenção de fuga desta subrealidade incompatível com a célula fundamental da sociedade – a Família, aspiram sair o mais rápido possível. A permanência rápida ou não em instituições totais interfere na “carreira moral” de seus residentes, podendo ser duradoura o suficiente para levar ao receio de enfrentar a vida fora das mesmas11– um exemplo apreendido a nível relacional é o medo de que ninguém cuide adequadamente da estomia após a alta, condicionando que alguns técnicos de enfermagem disponibilizem seus contatos pessoais a fim de instruir telefonicamente os adoecidos.

Desta maneira, pondera-se que o presente estudo tem como limitações: a sua composição de amostra específica influenciando na apreensão de resultados do plano de fundo sociocultural desta localidade, contato único no ambulatório antineoplásico e, pela exclusão dos pacientes que por motivos não informados, foram encaminhados ao Centro Cirúrgico e não realizaram o procedimento, o que ofereceria um panorama analítico mais abrangente sobre o acesso. Seguidamente na perspectiva de análise de redes de atenção, elucubra-se acerca de possíveis vieses decorrentes do nível de atenção no qual foi realizada a coleta (o terciário), tais como sentimento de medo e ansiedade por conta da programação cirúrgica influenciando nas narrativas.

Em suma, a etnografia desvelou aspectos sociais importantes como a medicalização, mobilização em rede concernente ao capital social para acesso verificando ainda o pagamento de exames particulares para obtenção de tramite mais rápido, a resiliência heroica e social como recursos durante a permanência após fatores deletérios internos e externos ao CACON.

Conclusão

O acesso de pessoas adoecidas por CCR aguardando pela estomização no nível terciário do SUS, indica dependência dos discursos médicos, demora no trâmite entre níveis para a confirmação diagnóstica, o “paguei no particular” e percurso desgastante para adoecidos residentes e outras localidades, verificando-se a pronta necessidade de capital social para adquirir consciência das formas para adentrar a rede e disposição para trilhá-la. Isto coloca em descrédito sobretudo a APS e fortalece a compreensão social de que a saúde suplementar e as operadoras de planos particulares, prestam um atendimento ágil.

Seguidamente, a demora na confirmação diagnóstica e sintomas graves são fatores estressantes na espera e naturalmente incrementam o desgaste psicoemocional desde a APS e desta forma a resiliência coletiva precisou ser ativada em um processo de transmutação (paciência-resiliência) que ocorreu na instituição total a partir da fraternização, com a convivência em espaços de uso comum, contando com o apego a rede de apoio.

Reflexionou-se como uma fortaleza do estudo, que a etnografia contemporânea de âmbito hospitalar prevê interações proporcionais ao tempo de internação da pessoa. A pesquisa contribui para profissionais da assistência e gestão de serviços de saúde, por proporcionar conhecer as experiências de acesso e aguardo pelo procedimento cirúrgico. Futuramente pesquisas devem ser realizadas acerca das redes de resiliência coletiva de adoecidos com CCR e familiares no meio urbano-rural e no tocante as formas disponíveis para agilizar as vias de acesso dos usuários oncológicos na rede do SUS.

Conflito de interesses: Os autores declaram que não houve conflitos de interesse.

Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Bolsa de mestrado número 4892065.

 

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