Rev Cuid. 2021; 12(1): e1306
http://dx.doi.org/10.15649/cuidarte.1306
RESEARCH ARTICLE
Configuração dos atendimentos oncológicos em um município de Minas Gerais, Brasil
Offering Oncology Services in a municipality of Minas Gerais, Brazil
Distribución de los servicios oncológicos en un municipio de Minas Gerais, Brasil
Jefferson Felipe Ribeiro 1, Denis de Oliveira Rodrigues 2, Sheilla de Oliveira Faria 3, Fábio de Souza Terra 4, Eliza Maria Rezende Dázio 5, Murilo César do Nascimento 6
Histórico
Recebido: 15 de junho de 2020
Aceito: 19 de outubro de 2020
Publicado: 11 de marco de 2021
Como citar este artigo: Ribeiro, Jefferson Felipe; Rodrigues, Denis de Oliveira; Faria, Sheilla de Oliveira; Terra, Fábio de Souza; Dázio, Eliza Maria Rezende; Nascimento, Murilo César do. Configuração dos atendimentos oncológicos em um município de Minas Gerais, Brasil. Revista Cuidarte. 2021;12(1):e1306. http://dx.doi.org/10.15649/cuidarte.1306
Atribución 4.0 Internacional (CC BY 4.0)
Resumo
Introdução: O câncer configura-se como um relevante problema de saúde pública mundial e impacta a carga global de doenças. Visto isso, este estudo teve como objetivo geral conhecer a configuração clínica, assistencial e epidemiológica dos atendimentos às pessoas com câncer de um município do estado de Minas Gerais, Brasil. Materiais e Métodos: Estudo transversal, descritivo, seguido por abordagem espacial em saúde, realizado com dados de prontuários que integram os registros hospitalares de câncer de um município sul mineiro no período de 2007 a 2017. Para a análise dos dados contou-se com o auxílio dos softwares EpiInfo, TerraView e QGis. Resultados: Foram 1914 pessoas atendidas, com predominância de sexo masculino, idade superior a 60 anos, cor branca, ensino fundamental completo, ocupação doméstica. Oncologia clínica, estadiamento tipo I, doença estável, câncer de pele, adenocarcinoma, cirurgia, quimioterapia e ausência de razão para não tratar despontaram como as variáveis clínico-assistenciais mais frequentes. Constatou-se um aporte expressivo dos registros a partir de 2009 e um decréscimo de casos não-analíticos. Obteve-se 94,7% de geocodificação e verificou-se uma distribuição espacial heterogênea pela área urbana, com conglomerados em diferentes bairros. Conclusão: A configuração clínica-assistencial e epidemiológica dos atendimentos oncológicos proposta foi alcançada. As distribuições temporal, espacial e de frequência dos atendimentos apontam para um incremento substancial na cobertura assistencial de pessoas com câncer tratadas no cenário estudado.
Palabras clave:Neoplasias; Oncologia; Institutos de Câncer; Saúde Pública; Enfermagem
Abstract
Introduction: Cancer is a major public health problem worldwide that has an impact on global morbidity rates. This study aimed to determine the clinical, assistance and epidemiological offer of oncology services provided to people with cancer in a municipality of Minas Gerais, Brazil. Materials and Methods: A descriptive cross-sectional study was conducted with a geographical approach to health using data from oncological medical records in a municipality of Minas Gerais between 2007 and 2017. Epi Info, TerraView and QGIS were used for data analysis. Results: 1914 patients received assistance, who were predominantly white males over 60 years old holding complete elementary education and household occupation. The most frequent clinical care variables included clinical oncology, type I cancer staging, cancer stabilization, skin cancer, adenocarcinoma, surgery, chemotherapy and no reason for non-treatment. An important contribution was observed in records after 2009, as well as a decrease in non-analytic cases. 94.7% of geocoding was made with a heterogeneous spatial offer in urban areas and clusters in different neighborhoods. Conclusions: The clinical, assistance and epidemiological offer proposed for oncology services has actually been carried out. Temporal, spatial and frequency of care offers indicate a substantial increase in healthcare coverage for people with cancer who have received treatment under this scenario.
Key words: Neoplasms; Medical Oncology; Cancer Care Facilities; Public Health; Nursing
Resumen
Introducción: El cáncer representa un grave problema de salud pública a nivel mundial que tiene un impacto en la tasa de morbilidad global. El presente estudio tuvo como objetivo general conocer la distribución clínica, asistencial y epidemiológica de los servicios oncológicos prestados a personas con cáncer en un municipio del estado de Minas Gerais en Brasil. Materiales y métodos: Estudio descriptivo transversal con un enfoque geográfico en salud que se realizó con datos de registros médicos oncológicos de un municipio de Minas Gerais entre 2007 y 2017. Se utilizaron los programas Epi Info, TerraView y QGIS en el análisis de datos. Resultados: Se atendieron 1914 personas con predominio de varones blancos mayores de 60 años con educación primaria completa y ocupación hogar. Dentro de las variables de asistencia clínica más frecuentes se encuentran la oncología clínica, la estadificación de tipo I, la estabilización de la enfermedad, el cáncer de piel, el adenocarcinoma, la cirugía, la quimioterapia y la ausencia de motivos para no tratarse. Se observó una importante contribución en los registros a partir de 2009, así como una disminución de los casos no analíticos. Se obtuvo una geocodificación del 94.7% con una distribución espacial heterogénea en el área urbana y conglomerados en diferentes barrios. Conclusión: Se ha llevado a cabo la distribución clínica, asistencial y epidemiológica propuesta para servicios oncológicos. Las distribuciones temporales, espaciales y de frecuencia de la atención apuntan a un aumento sustancial de la cobertura de la atención para las personas con cáncer que recibieron tratamiento en el escenario estudiado.
Palabras clave: Neoplasias; Oncología Médica; Instituciones Oncológicas; Salud Pública; Enfermería.
INTRODUÇÃO
O câncer configura-se como um importante problema de saúde pública no Brasil e no Mundo, sendo que até o ano de 2040 são estimadas 27,5 milhões de pessoas diagnosticadas e 16,3 milhões de mortes pela doença. Embora se observe uma atenção crescente a terapêuticas que prolongam a vida das pessoas com neoplasias malignas, os avanços técnico-científicos recentemente alcançados na área da oncologia contrastam com um incremento expressivo da incidência da doença a cada ano 1.
Os processos de urbanização e modernização ocorridos no Brasil desde a década de 50 modificaram a educação, o estilo, a expectativa de vida, a qualidade e o acesso aos serviços de saúde. Não obstante, as transições demográficas e epidemiológicas também configuram aspectos que contribuem para a mudança no perfil de risco para as doenças crônicas, como o câncer. Atrelado a isso, os níveis de consumo de tabaco, os padrões da dieta, as características reprodutivas, bem como a prevalência de infecções relacionadas ao câncer, por exemplo, são padrões que têm mudado muito rapidamente e merecem atenção no contexto da saúde coletiva 2.
Ao analisar o direito constitucional à cidadania e de acesso à saúde, por meio de políticas públicas pró qualidade de vida, percebe-se a necessidade de melhorias no processo de programação, análise, gerenciamento e assistência à saúde. Em diversos países, os registros de câncer têm balizado pesquisas e posteriores planejamento/avaliação do combate ao câncer. No Brasil, a prática de tais registros - conforme preconizado pela Organização Mundial de Saúde – faz parte da vigilância da doença e compõe a atual Política Nacional de Atenção Oncológica 3.
Ao considerar que a estruturação dos serviços de rastreamento, o controle dos fatores de risco, a disponibilidade e o acesso aos métodos de diagnóstico/tratamento constituem em elementos relevantes que impactam nas taxas de incidência e de mortalidade por câncer 4, compreende-se como profícuas as políticas e pesquisas que favoreçam o fortalecimento assistencial e de gestão da Alta Complexidade em Oncologia. Neste sentido, configuram-se bem-vindas as iniciativas que busquem conhecer a configuração clínica, epidemiológica e assistencial dos atendimentos a pessoas com câncer, nos diversos cenários do Sistema Único de Saúde, no intuito de favorecer a criação de novas políticas públicas voltadas para esta população.
Assim, este estudo teve como objetivo geral conhecer a configuração clínica, assistencial e epidemiológica dos atendimentos às pessoas com câncer de um município do estado de Minas Gerais, Brasil. Os objetivos específicos foram de caracterizar demográfica e epidemiologicamente os residentes em um município mineiro/brasileiro que passaram por atendimento oncológico, conhecer as características clínicas e assistenciais das pessoas com cânceres tratadas no município, identificar a distribuição temporal dos atendimentos locais em oncologia, bem como descrever a configuração espacial dos casos assistidos em oncologia pela área urbana do município em estudo.
MATERIAIS E MÉTODOSTrata-se de um estudo transversal, descritivo, seguido por abordagem espacial em saúde, realizado com dados de prontuários que integram um serviço de registros hospitalares de câncer. Em consonância com a epidemiologia descritiva, para além da caracterização de quem adoeceu e de quando foi atendido, esta pesquisa retratou onde estavam os locais de residência das pessoas acometidas por câncer, assistidas no serviço de saúde de interesse.
Os dados secundários foram obtidos por meio de pesquisa de campo no serviço de Registro Hospitalar de Câncer (RHC) de um Centro de Oncologia, situado em um município classificado como polo assistencial de uma macrorregião de saúde ao Sul do Estado de Minas Gerais, Brasil. Assim, a pesquisa contou com os dados de prontuários referentes aos atendimentos oncológicos locais de uma Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Unacon).
Foram incluídos os registros referentes a pessoas com histórico de câncer ou acompanhamento oncológico devido à esta doença, no período de 2007 a 2017, residentes no Município contemplado pela Unacon pesquisada. As variáveis de interesse relacionadas às pessoas foram: sexo; faixa etária; raça/cor, escolaridade e ocupação. Quanto aos fatores de risco, atentou-se para: alcoolismo, tabagismo e histórico familiar de câncer. Sobre os aspectos clínicos e assistenciais verificou-se: clínica primária, estadiamento TNM (tumor, nódulos linfáticos, metástase), estado da doença ao final do primeiro tratamento, localização primária por grupo, tipo histológico, primeiro tratamento recebido e razão para não tratar. Já os dados relacionados ao espaço/lugar constituíram nas variáveis nome e endereço dos pacientes atendidos.
Foi solicitado à Unacon, que possui um serviço de RHC local, autorização para coletar os dados para a caracterização demográfica, epidemiológica, clínica-assistencial e espacial das pessoas com cânceres tratadas no referido Município. Assim, a equipe do RHC apresentou aos pesquisadores uma planilha eletrônica, alimentada a partir de uma ficha síntese (impressa), adotada na instituição, onde eram digitados todos os campos padrão que compõem o Sistema Informatizado para Registros de Câncer (SisRHC), do Instituto Nacional de Câncer (INCA).
Do mesmo modo, para a coleta dos dados de localização das pessoas atendidas pela Instituição que residiam no Município, procedeu-se atentando para as variáveis endereço (tipo de logradouro, nome do logradouro, número da residência), disponíveis nos prontuários hospitalares, ficha impressa e planilha eletrônica. A disponibilização pelos profissionais do referido arquivo digital, o qual continha as variáveis de interesse digitadas, contribuiu para a otimização do procedimento de coleta dos dados.
Os dados obtidos foram armazenados inicialmente em uma planilha digital elaborada e normalizada pelos pesquisadores, com posterior migração dos campos para um banco de dados no Software EpiInfo. A partir de então procedeu-se com a descrição das distribuições de frequência e das medidas de tendência central, fundamentadas teoricamente na epidemiologia e estatística descritivas, seguidas pela abordagem espacial em saúde pública. Desta forma, os resultados foram apresentados por meio de representação textual, tabular, gráfica e cartográfica.
Quanto ao processo de geocodificação dos endereços e a criação dos mapas de pontos, foi elaborado um banco de dados no ambiente do Sistema de Informação Geográfica (SIG) TerraView, versão 4.2.2, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE 5. Já para a análise da densidade de pontos contou-se com o auxílio do SIG QGis, em sua versão 3.4 6, o qual possibilitou o processamento dos mapas de calor e posterior análise espacial exploratória.
Para a verificação de aglomerados de casos, ou seja, dos locais de residência das pessoas atendidas no referido Centro de Oncologia, foi utilizada a estimativa de Kernel, técnica que utiliza uma divisão da área de estudo, em que o número de eventos pode ser contado por célula, quando se buscam estimativas de densidade. Então, são calculadas estimativas de densidade para as áreas vizinhas, utilizando funções estatísticas de Kernel, o que fornece uma superfície de concentração (“áreas quentes”), seguida por ”suavização” das áreas 7.
O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição proponente, conforme parecer de número 2.302.444 de 2017. Foram cumpridos todos os termos das Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos previstos na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.
RESULTADOS
Observaram-se 1914 registros de atendimentos entre os anos de 2007 e 2017. Destes, 1593 registros referiam-se a casos analíticos (83,2%) e 321 prontuários eram provenientes de casos não-analíticos (16,77%). Constatou-se que 50,99% (976) das pessoas atendidas eram do sexo masculino; 61,18% (1171) na faixa etária de 60 anos ou mais; 35,37% (n=677) com ensino fundamental completo e 91,07% (1743) eram brancos. Quanto a variável ocupação, houve maior número de trabalhadores nas áreas de serviços domésticos, correspondendo a 39,52% (756), seguido por trabalhadores do setor agrícola com um percentual de 16,36% (313) do total de registros.
Já no que se refere aos fatores de risco para o desenvolvimento de câncer, verificou-se que 59,46% dos registros (1138) não apontavam para histórico de alcoolismo e em 54,34% dos registros (1040) havia a negativa quanto à condição de tabagismo. Em relação ao histórico familiar de câncer, 46,76% (895) dos assistidos não possuíam em seu prontuário a informação acerca desta variável.
Ao avaliar a distribuição das clínicas primárias de atendimento, constatou-se que a maioria tem por referência de entrada a Oncologia Clínica, representando um percentual de 47,73% (945). Quanto ao estadiamento clínico do tumor, justifica-se a alta frequência do item ‘não se aplica’ com um total de 16,20% dos registros (310) ao se levar em consideração aspectos como idade dos pacientes e tipo do tumor. Soma-se a isso, a possiblidade de utilização de classificações distintas da TNM, a qual é utilizada no Integrador do SisRHC.
A Tabela 1 apresenta a distribuição das principais localizações primárias detalhadas dos tumores mais combatidos na instituição de estudo, conforme grupos da Classificação Internacional de Doenças para Oncologia (CID-O)(8).
Tabela 1 – Distribuição dos registros de atendimentos na instituição sul mineira, Brasil, segundo a variável “localização primária detalhada do tumor”, entre 2007 e 2017 (n=1914 – 100%).
Legenda: C44.3 a C77.2 = 59 localizações em 1754 registros (91,54%); Outras localizações menos identificadas* = 86 localizações em 160 registros (8,36%). |
Sob outra perspectiva, no gráfico da Figura 1, pode-se visualizar a distribuição das localizações primárias dos tumores de forma agrupada, segundo a descrição de grandes grupos da Classificação Internacional de Doenças para Oncologia (CID-O 8.
Figura 1 – Distribuição dos registros de atendimentos na instituição sul mineira, Brasil, segundo grandes grupos da variável “localização primária do tumor”, entre 2007 e 2017 (n=1914 – 100%).
Quanto aos os tipos histológicos, o adenocarcinoma foi o mais ocorrente com um percentual de 26,12% (500). Sobre o primeiro tratamento recebido no hospital, os três mais frequentes foram a cirurgia com 38,92% (745), a quimioterapia com 29,89% (572) e hormonioterapia com 8,88% (170), seguidos por combinações que incluíam não só esses, mas também outros tipos de tratamento. Em relação ao estado da doença ao final do primeiro tratamento, 69,12% (1323) dos casos foram observadas as condições: doença estável, remissão completa e remissão parcial, por ocasião da conclusão do tratamento inicial. Ao se abordar a razão para não realização do tratamento, o item com maior frequência foi o “Não se aplica” com um percentual de 80,77% (1546), levantando uma questão acerca do preenchimento desta variável.
A evolução temporal do percentual de atendimentos às pessoas com câncer residentes no município de estudo, com base no ano da primeira consulta na instituição oncológica de interesse, pode ser visualizada no gráfico da Figura 2.
Figura 2 – Gráfico com a distribuição dos casos analíticos e não analíticos assistidos em oncologia na instituição sul mineira, Brasil, segundo a variável “ano da primeira consulta”, de 2007 a 2017* (n=1914 – 100%).
Legenda*: A menor frequência de registros em 2017 correspondeu a um retrato dos dados digitalizados na instituição até outubro daquele ano e não significa declínio na distribuição dos atendimentos/pessoas tratadas (vide discussão).
Como resultado do processo de georreferenciamento dos dados, obteve-se 94,72% (1813) de geocodificação, referentes aos endereços residenciais de pessoas atendidas por câncer. Para a análise espacial, os locais de moradia representados por um mapa de pontos foram sobrepostos a uma base cartográfica com os arruamentos da zona urbana do referido município, o que possibilitou a visualização da evolução da distribuição espacial dos casos pelo cenário e período temporal de interesse.
Observou-se uma distribuição menos frequente nos primeiros anos do período de estudo (2007 a 2009), com aparente aglomeração e variação de casos a partir de 2010. Houve maior número de assistidos num bairro central, sendo que estes correspondem a 24,14% (462) do total de registros.
No que se refere às principais localizações anatômicas primárias de tumores, realizou-se a distribuição espacial dos casos mais atendidos, sendo esses: pele (26,12%, 500), órgãos digestivos (17,19%, 329), órgãos genitais masculinos (14,41%, 276) e mama (12,75%, 244). À luz da densidade espacial dos endereços das pessoas atendidas por tais causas, notou-se conglomerados em diferentes bairros urbanos, conforme mapa da Figura 3.
Figura 3 – Distribuição e densidade espacial dos locais de residência dos casos autóctones de câncer atendidos na instituição sul mineira, Brasil, segundo as localizações primárias de tumores mais registradas (1813 pontos/endereços urbanos), entre 2007 e 2017.
Legenda: A – Pele; B – Órgãos Digestivos; C – Órgãos Genitais Masculinos; D – Mama. *Espacialização de 94,72% dos locais de residência das pessoas atendidas (n=1914): 1813 endereços geocodificados.
Em relação aos atendimentos a casos autóctones de câncer de pele, verificou-se uma maior distribuição de áreas “quentes”, referentes às residências das pessoas, em diferentes regiões do município. Já nos outros três tipos de câncer, quais sejam, órgãos digestivos, órgãos genitais masculinos e mama, apesar de existirem outras áreas com diferentes densidades de casos, observou-se uma concentração mais expressiva na região de um bairro urbano específico.
DISCUSSÃOFoi possível caracterizar demográfica e epidemiologicamente os residentes do município que passaram por atendimento oncológico. Ao abordar os aspectos sócio demográficos pôde-se observar que a população estudada foi constituída, em sua maioria, por pessoas do sexo masculino, na faixa etária de 60 anos ou mais, raça/cor branca e ensino fundamental completo. Em estudo sobre a caracterização social e clínica dos homens com câncer atendidos em um hospital universitário constatou-se, no momento da internação, média de 73 anos de idade, cor branca (81,3%) e ensino fundamental (54,5%) 7.
Ainda, um estudo sobre o perfil sociodemográfico dos pacientes em cuidados paliativos em um hospital de referência em oncologia, também encontrou uma faixa etária predominante em pessoas com câncer de idades superiores a 60 anos, na qual se relaciona o aumento da expectativa de vida e queda da natalidade. Esse aumento da população idosa resulta no aumento das doenças crônico-degenerativas 9. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que os idosos estarão em maior número que crianças e adolescentes em 2030 e que a mortalidade por câncer crescerá para 45% 10.
As ocupações profissionais “doméstica” e “trabalhadores agrícolas” foram as mais frequentes por ocasião do registro hospitalar de câncer, achados esses que corroboram com os resultados de outras investigações. Ao se compreender a ocupação doméstica como aquele (a) trabalhador (a) atuante nas residências de seus empregadores, pode-se pensar no atendimento prestado a um grupo de pessoas pertencentes a estratos socioeconômicos menos favorecidos. Já se a variável representar a condição “do lar”, tal inferência deixa de fazer sentido e pode ser então substituída pela ideia de um grupo mais heterogêneo do ponto de vista social e econômico. Ao resgatar-se a variável escolaridade, em que 69,85% dos registros se referiam a pessoas com ensino fundamental completo e ensino fundamental incompleto, acredita-se que a variável ocupação tenha, de fato, caracterizado, um grupo de pessoas de estratos socioeconômicos menos favorecidos. Entretanto, como a condição social não foi alvo da presente investigação, não há indícios que permitam avançar sobre este aspecto da distribuição dos dados.
Outra característica que chama atenção em relação à atuação laboral das pessoas em questão é o também expressivo percentual de trabalhadores agrícolas atendidos no serviço de oncologia. Sabe-se a importância das exposições comuns a este grupo de trabalhadores no que diz respeito ao desenvolvimento do câncer de pele ao longo da vida, como é o caso da incidência direta da luz solar e de radiação ultravioleta durante trabalho em ambiente aberto. Visto que os raios ultravioletas (UV) penetram na pele interagindo com as biomoléculas, estes podem produzir alterações na estrutura do DNA que levem a mutações, e, consequentemente provocar lesões severas na pele e uma suscetibilidade ao câncer 11.
Não obstante, o manuseio de agrotóxicos advindo do trabalho no campo também constitui noutro fator de risco importante para o desenvolvimento de certos tipos de câncer. A literatura aponta impactos deletérios do uso de agrotóxicos sobre a saúde humana. Além dos danos agudos já conhecidos, muitos danos crônicos, dentre os quais se destacam as doenças de pele; teratogênese, carcinogênese, entre outros 12. Para ambos os tipos prováveis de exposição, encontra-se margem para sugerir a existência de associação entre a ocupação laboral de trabalhadores agrícolas com a necessidade de atendimento por câncer de pele apresentada.
Ao se abordar sobre os fatores de risco associados ao desenvolvimento de neoplasias, com o presente estudo foi possível observar uma maior predominância de pessoas que relataram nunca ter sido alcoolistas, nem tabagistas. Já associado a variável histórico familiar de câncer, teve registrado em sua maioria o item ‘sem informação’. De acordo com um relatório de registro hospitalar 13, no período analisado de 2010 a 2014, 12,2% eram identificados como etilistas, 42,6% nunca ingeriram álcool sequer uma vez; 22% dos pacientes eram tabagistas, 35,8% nunca tiveram um histórico com tabaco. O histórico familiar foi positivo em 35,7%, negativo em 28,1% e sem informação 36,2%.
Assim como o alcoolismo e o tabagismo, o histórico familiar de câncer é um aspecto que merece destaque pela sua importância epidemiológica, mas que, em se tratando de um dado oriundo de autorreferimento, não há garantias de que as pessoas saibam ou se lembrem de cânceres pré-existentes na família por diversas gerações. Além disso, apesar da já conhecida relação causal entre alcoolismo e o tabagismo com o surgimento de alguns tipos de cânceres, convém esclarecer que o fato de os campos específicos para a caracterização destas variáveis não serem de preenchimento obrigatório no SisRHC, pode ter ocorrido interferência no registro apropriado destas condições e, consequentemente, na melhor compreensão da real distribuição dos fatores de risco nos registros analisados.
Quanto aos aspectos clínicos e assistenciais, sobre a variável clínica primária, a oncologia clínica/oncologia corresponderam à parcela expressiva das especialidades que acolheram os casos registrados. Tal característica remete a um hospital de porte médio, cujo atendimento inicial mais frequente é oferecido por profissional com formação em oncologia, mas sem um alto grau de subespecialização como identificado em municípios metropolitanos e suas instituições com referência exclusiva em diversos tipos de atendimento oncológico.
Sobre o estadiamento mais frequentemente registrado foi o do tipo I, o qual remete à um cenário em que predominam diagnósticos precoces da doença, o que denota a importância da presença do hospital e do funcionamento do serviço de oncologia no município. Este achado corrobora com outros aspectos positivos identificados, como o do estado da doença ao final do primeiro tratamento. Na maioria dos casos foram observadas as condições: doença estável, remissão completa e remissão parcial, por ocasião da conclusão do tratamento inicial. Tais resultados podem ser compreendidos como importantes indicadores sobre a efetividade da assistência prestada na instituição hospitalar pesquisada. Acredita-se que, em conjunto, tais características sinalizam, de forma similar, para um consequente impacto positivo direto e indireto sobre a qualidade de vida das pessoas que obtiveram o atendimento.
Um importante resultado deste trabalho se refere à localização primária do tumor, conforme detalhamentos da Tabela 1 e Figura 1. Neste sentido, é importante ressaltar que a distribuição dos locais mais ou menos acometidos/tratados não guarda relação direta com a incidência nem com a prevalência dos tipos de cânceres despontados no município. Ao considerar que a fonte de dados do presente trabalho, o SisRHC, registra dados dos atendimentos em oncologia, a maior ou menor frequência das localizações primárias dos tumores revelam o perfil da assistência ofertada, bem como um retrato dos serviços/especialidades oncológicos disponíveis.
Ao se comparar os dados obtidos com os apresentados em estudo realizado noutra instituição, os tumores de maior frequência de atendimentos registrados foram respectivamente o total de tumores de pele com 3.422 casos (15,1% do total de casos), tumor de mama com 3.142 casos (13,9%), 2.833 casos de tumores do sistema digestivo, incluindo neste estrato os tumores de cólon, reto, estômago e esôfago (12,5%), e 1.978 casos de tumor de próstata (8,7%) 13. Resultados os quais corroboram com os obtidos na presente pesquisa.
Tais achados se diferem, por natureza, dos resultados trazidos pelos Registros de Câncer de Base Populacional (RBPC), por exemplo, a partir dos quais é possível estimar medidas de frequência dos tipos de cânceres na população. Foi por isso que, apesar do o destaque para a pele como a localização primária do tumor mais registrada, dado que apresenta coerência com a frequente ocupação de trabalho rural observada, com as possíveis exposições ao sol e aos agrotóxicos, não houve intenção de discutir sobre incidência/prevalência, exposições e efeitos dos cânceres que acometeram a população residente no período de interesse.
Foi interessante verificar que o adenocarcinoma se configurou como o tipo histológico mais encontrado, uma vez que a experiência prévia da equipe executora no ambiente hospitalar local transmitia a impressão de que era o carcinoma basocelular o tipo mais atendido naquele ambiente de clínica médico-cirúrgica. Neste sentido, reforça-se a relevância do desenvolvimento de estudos científicos com potencial de clarificar a real situação epidemiológica, de favorecer a reflexão sobre paradigmas, bem como de contribuir, não raramente, na desconstrução de pressuposições empíricas, pautadas na observação não sistematizada e rotineira dos serviços de saúde.
Ainda sobre a assistência hospitalar, no que se refere ao primeiro tratamento recebido, chama a atenção a alta gama de combinações terapêuticas oferecidas/prestadas. A cirurgia como a opção de tratamento mais realizado é outro dado que demonstra coerência interna entre a localização primária do tumor mais frequente, a pele. Por outro lado, a baixa frequência da clínica primária “cirurgia” não corresponde ao alto registro da “cirurgia” como primeiro tratamento recebido. Acredita-se que tal diferença se deva à realização de primeira abordagem/consulta por representantes da oncologia/oncologia clínica, mas que o primeiro tratamento dos casos com indicação cirúrgica tenha sido efetivado após encaminhamento dos pacientes aos colegas cirurgiões.
A alta frequência da variável “não se aplica”, em relação à razão para não realizar o tratamento, representa que a maior proporção das pessoas atendidas apresentava indicação terapêutica de continuidade do tratamento na instituição pesquisada. Tal dado remete a um resultado importante sobre o atendimento da demanda e sobre o fluxo de tratamentos contínuos ofertados pelo referido centro de oncologia. Exemplo do impacto positivo, no que diz respeito à prestação da assistência, pode ser visto no fato de a somatória dos registros de condições desfavoráveis referentes ao óbito, à doença avançada, à falta de condições clínicas, à outras doenças associadas, à recusa do tratamento, ao abandono do tratamento, bem como às complicações de tratamento, corresponder à 5,12% do total de casos.
Já em relação à evolução temporal dos atendimentos, percebeu-se um avanço importante dos registros a partir de 2009. Apesar de atuar desde 2005, o RHC da referida instituição registrou dados de forma voluntária até 2008, com vistas a implantação do Serviço de Oncologia, que ocorreu em 2009. O serviço foi habilitado como Unacon por meio da instituição da Portaria nº 62, de 11 de março de 2009 14, revogada posteriormente pela Portaria nº 102, de 3 de fevereiro de 2012 15.
O fato de se ter observado menos registros de atendimentos em 2017, em relação aos demais anos da série temporal, se deve a um retrato fidedigno dos dados digitalizados na instituição até outubro de 2017. Sabe-se que existe um árduo processo de trabalho referente à informatização dos dados dos prontuários ao sistema eletrônico, o que ocasiona uma lacuna entre a produção de fato efetuada no ano anterior e o cômputo dos registros disponíveis no SisRHC durante os meses do ano seguinte. Os dados analisados obtiveram última atualização realizada em seis de julho de 2018 e ainda convergiam com os registros averiguados e datados em outubro de 2017. Ou seja, o próprio tempo necessário para a digitação, tabulação e alimentação dos dados de prontuários para o sistema informatizado do RHC interferiu na completude da informação temporal, motivo pela qual se deixa explícita nessa discussão tal limitação de estudo.
Mostra de que a impressão da diminuição de novos atendimentos a pessoas com câncer não procede, nem tampouco representam declínio na distribuição dos registros pelo referido ano, pode ser vista numa comparação com dados mais recentes do Instituto Nacional de Câncer. Consulta eletrônica ao Integrador RHC evidencia que em 2017 houve 285 atendimentos oncológicos aos munícipes na instituição de interesse, o que corresponde a 14,89% do total de registros da série apresentada e contra aponta o ano de 2017 como o de produção mais expressiva desde 2007 16. Contudo, mesmo com tal peculiaridade, a opção de não excluir o ano de 2017 do estudo se deu pela importância que os pesquisadores atribuem à descrição fiel do cenário epidemiológico-assistencial de interesse, exatamente como observado por ocasião do trabalho de campo, com a técnica, fonte e período específicos para a coleta dos dados locais.
Outro ponto importante diz respeito aos tipos de casos atendidos/registrados a nível hospitalar. O RHC cadastra e classifica as pessoas com câncer atendidas na instituição em duas categorias: os casos analíticos e os casos não analíticos. Os critérios para tal categorização são o estadiamento clínico da doença, o estado geral de saúde do paciente por ocasião de sua chegada ao hospital, do tipo de abordagem que é feita à pessoa naquele serviço, bem como as intervenções anteriormente realizadas em outros hospitais, quando se aplicar. Com isso, a atenção a esses dois conjuntos de informações (casos analíticos e não analíticos) possibilita retratar o perfil do paciente com neoplasia maligna que procura a instituição, sua condição de chegada e os recursos utilizados para diagnóstico, tratamento e acompanhamento 17.
No presente estudo foi observado um decréscimo no registro de casos não-analíticos na instituição. Tal variação, apresentada na Figura 1, alinha-se ao dado sobre “tratamento realizado fora”, observado em 2,25% dos registros, como uma das razões para não tratar na instituição pesquisada. Tanto a configuração temporal dos atendimentos, quanto à evolução espacial das residências dos atendidos, sinalizam para um incremento na capacidade instalada do serviço de oncologia, que passou a prestar a assistência necessária, sem ter que acessar de forma tão acentuada a rede regional, intra e interestadual da alta complexidade oncológica. Tal cenário pode significar robustez do ponto de atenção estudado e favorece ganhos em saúde para os municípios e munícipes cobertos.
A respeito da análise espacial, a distribuição das residências dos munícipes com câncer atendidos em todo o período no serviço de saúde torna evidente o quanto um bairro central configurou-se como o principal local de moradia daquelas pessoas. Foi possível também verificar a presença de conglomerados para as quatro localizações primárias dos tumores mais frequentes no estudo, demonstrando uma heterogeneidade na distribuição de áreas “quentes”, ou seja, de maior concentração dos casos. Houve, nas proximidades de um bairro específico, certa repetição de aglomeração das residências para os quatro tipos de câncer mais atendidos. Apesar do mapa de Kernel possibilitar a observação destes conglomerados, não se encontrou explicações para tais concentrações, pois os bairros são distintos em várias características sociodemográficas.
O conhecimento da epidemiologia do câncer, bem como dos atendimentos da Alta Complexidade Oncológica são importantes para o processo de formulação de políticas de saúde na área. Os estudos com este enfoque podem contribuir para a gestão, alocação de recursos conforme prioridades, ação continuada de suporte aos grupos mais vulneráveis, controle de fatores de risco, a fim de modificar a carga da doença e reduzir a mortalidade populacional por tal causa ao longo do tempo 2. Em decorrência do exposto, o presente trabalho corrobora os estudos epidemiológicos voltados para a vigilância e controle do câncer no Brasil.
Ressalta-se que o enfoque descritivo do estudo foi de retratar o panorama de atendimentos realizados e não de analisar ou discutir relações/nexos causais entre as características das pessoas e suas exposições com os desfechos de câncer. Apresenta-se como limitação, portanto, possível incompletude na apresentação de um cenário epidemiológico mais abrangente no que se refere à causalidade em oncologia. Diante disso, sugere-se, por fim, que outras pesquisas sejam desenvolvidas com o intuito de propiciar novas evidências referentes às importantes relações de causa e efeito no contexto do controle do câncer.
CONCLUSÃO
O presente estudo cumpriu o objetivo de apresentar a configuração clínica-assistencial e epidemiológica dos atendimentos oncológicos às pessoas com câncer de um município mineiro/brasileiro. Tomadas em conjunto, as distribuições de frequência, temporal e espacial apontam para um incremento expressivo na cobertura de pessoas atendidas por câncer no cenário de interesse. Acredita-se que tal panorama retrate um fortalecimento da capacidade assistencial instalada da Unidade de Alta Complexidade Oncológica pesquisada, o que sinaliza para um aspecto positivo daquele ponto de atenção em relação aos possíveis ganhos em saúde para os munícipes cobertos pelo serviço.
Espera-se que os resultados apresentados neste estudo contribuam para reflexões sobre um melhor atendimento e gestão em saúde, especialmente no contexto da Alta Complexidade Oncológica. Acredita-se que tais resultados apresentam potencial para auxiliar a equipe multidisciplinar e os gestores locais no planejamento, na execução e na avaliação assistência em oncologia prestada por todos os pontos da rede de atenção à saúde. Destaca-se que, se bem utilizados, os dados levantados podem contribuir para o importante processo de trabalho de vigilância do câncer.
Conflito de interesses: Os autores declaram que não houve conflito de interesses.
Financiamento: A pesquisa contou com recursos próprios da equipe executora.
REFERÊNCIAS