Rev Cuid 2017; 8(2): 1616-27
http://dx.doi.org/10.15649/cuidarte.v8i2.391
ARTÍCULO ORIGINAL
ESPIRITUALIDADE DE FAMÍLIAS COM UM ENTE QUERIDO EM SITUAÇÃO DE FINAL DE VIDA
ESPIRITUALIDAD DE FAMILIAS CON UN SER QUERIDO EN SITUACIÓN DE FINAL DE VIDA
SPIRITUALITY OF FAMILIES WITH A LOVED ONE IN END-OF-LIFE SITUATION
Marcelo Miqueletto1, Lucía Silva2, Crislaine Barros Figueira3, Maiara Rodrigues dos Santos4, Regina Szylit5, Carolliny Rossi de Faria Ichikawa6
1Enfermeiro. Hospital das Clínicas da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Botucatu, Brasil. E-mail: sp.marcelo@uol.com.br
2Doutora em Ciências. Professora Adjunta da Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, Brasil. Autor correspondente. E-mail: silva.lucia@unifesp.br
3Enfermeira graduada pela Faculdade Marechal Rondon. São Manuel, Brasil. E-mail: crisbfig@hotmail.com
4Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil. E-mail: maiara.santos@usp.br
5Doutora em Enfermagem. Professora Livre Docente da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil. E-mail: szylit@usp.br
6Doutoranda em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil. E-mail: caroll-rossi@hotmail.com
Histórico
Recibido: 16 de Febrero de 2017
Aceptado: 21 de Abril de 2017
Cómo citar este artículo: Miqueletto M, Silva L, Figueira CB, Santos MR, Szylit R, Ichikawa CRF. Espiritualidade de famílias com um ente querido em situação de final de vida. Rev Cuid. 2017; 8(2): 1616-27.http://dx.doi.org/10.15649/cuidarte.v8i2.391
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RESUMO
Introdução: O cuidado no final da vida deve ser marcado pela revalorização da dimensão espiritual. Objetivo: Compreender o papel da espiritualidade na vida de famílias que possuem um ente em situação de final de vida. Materiais e Métodos: Pesquisa qualitativa, realizada com quinze familiares de pacientes com doenças graves atendidos na rede de atenção primária à saúde de São Paulo, Brasil, por meio de entrevistas semiestruturadas. Os dados foram organizados e analisados conforme as figuras metodológicas da técnica do Discurso do Sujeito Coletivo. Resultados: A espiritualidade apresenta um papel singular para as famílias, visto que ajuda a conferir sentido às experiências de vida, sobretudo àquelas diretamente envolvidas com a doença e com a morte. Entretanto, não encontram espaço para a expressão dessas questões com os profissionais de saúde, com quem deveriam apresentar vínculo e corresponsabilidade para o cuidado pautado pela integralidade. Discussão e Conclusões: Estas famílias reconhecem a espiritualidade enquanto elemento fortalecedor diante das dificuldades enfrentadas com o adoecimento, mas dependem fortemente da disponibilidade da equipe para incrementar sua experiência.
Palavras chave: Espiritualidade; Religião; Família; Cuidados Paliativos; Morte.
RESUMEN
Introducción: El cuidado al final de la vida deber estar marcado por la revaloración de la dimensión espiritual. Objetivo: Comprender el papel de la espiritualidad en la vida de las familias que tienen un ser llegando al final de su vida. Materiales y Métodos: Investigación cualitativa, realizada con quince familiares de pacientes con enfermedades graves atendidos en la red de atención primaria de Sao Paulo, Brasil, a través de entrevistas semiestructuradas. Los datos fueron organizados y analizados de acuerdo a las figuras metodológicas de la técnica del Discurso del Sujeto Colectivo. Resultados: La espiritualidad tiene un papel único para las familias, ya que ayuda a dar sentido a las experiencias de vida, especialmente aquellos involucrados directamente con la enfermedad y la muerte. Sin embargo, no encontraron espacio para la expresión de estos temas con los profesionales de la salud, con quien deberían tener un vínculo y corresponsabilidad para el cuidado guiado por la integralidad. Discusión y Conclusiones: Estas familias reconocen la espiritualidad mientras como elemento fortalecedor sobre las dificultades que enfrentan con la enfermedad, pero dependen en gran medida de la disponibilidad de personal para aumentar su experiencia.
Palabras clave: Espiritualidad; Religión; Familia; Cuidados Paliativos; Muerte.
Introduction: End-of-life care should be marked by the re-appraisal of the spiritual dimension. Objective: This work sought to understand the role of spirituality in the lives of families with a loved one in end-of-life situation. Materials and Methods: This qualitative research was conducted through semi-structured interviews with 15 relatives of patients with serious diseases cared for in the primary health care network in São Paulo, Brazil. The data were organized and analyzed according to the methodological figures of the Collective Subject Discourse technique. Results: Spirituality represents a unique role for the families, as it helps to give meaning to life experiences, above all those directly involved with disease and death. However, they find no space to express those issues with the health professionals, with whom they should have a bond and co-responsibility for care based on integrality. Discussion and Conclusions: These families recognize spirituality as a strengthening element against difficulties confronted with the illness, but strongly depend on the health staff's availability to increase their experience.
Key words: Spirituality; Religion; Family; Palliative Care; Death.
INTRODUÇÃO
O cuidado em saúde, direcionado aos pacientes em situação de final de vida, caracterizada pela fase na qual a doença instalada não responde mais às intervenções curativas, vem sendo considerado no campo dos cuidados paliativos, filosofia de cuidado que preconiza o controle da dor e de outros sintomas e atendimento de questões psicossociais e espirituais do paciente e de seus familiares1.
Sob essa perspectiva, o cuidado em saúde deve ser marcado pela busca da revalorização da dimensão espiritual2.
A espiritualidade trata-se de um conceito distinto e mais abrangente que o conceito de religiosidade. Tem uma conotação subjetiva, favorecendo que as pessoas apresentem compreensões particulares sobre sua definição, amparadas por sua cultura. Nesse sentido, acredita-se ser fundamental assentir que as questões culturais, como as crenças familiares, devem ser compreendidas como sendo a sustentação para significar e reconstruir histórias de vida, que envolvam a saúde, a doença, a espiritualidade e a morte3.
Já o conceito de religião pode ser compreendido como a sistematização de elementos ritualísticos e simbólicos, que configuram o modo como as pessoas acessam o divino e o sagrado4.
Existe uma forte relação entre o envolvimento espiritual e a saúde. Um estudo recente que teve como objetivo investigar o papel da religiosidade e da espiritualidade como mecanismo de enfrentamento utilizado pelos cuidadores familiares diante do câncer infantil, evidenciou que estes componentes são fundamentais ao enfrentamento do câncer infantil por cuidadores familiares5.
Experiências pessoais de dor e sofrimento podem tornar-se suportáveis quando a espiritualidade é valorizada. Diante disso, faz-se necessário que o enfermeiro e demais profissionais de saúde reconheçam a espiritualidade como essencial ao ser humano e sejam capazes de identificar as angústias dos pacientes e de seus familiares6.
Uma grande potencialidade da Atenção Primária à Saúde reside em sua capacidade de as equipes profissionais oferecerem apoio no sentido de encorajar pacientes e famílias a enfrentarem situações adversas relacionadas à saúde, à doença e ao processo de morrer, buscando minimizar o seu sofrimento7.
Os profissionais de saúde que atuam na comunidade devem atentar para os valores, os costumes e as crenças, incluindo aspectos relacionados à espiritualidade dos indivíduos e das famílias que estão sob sua responsabilidade, visando oferecer uma assistência integral.
Face ao exposto, este estudo apresentou como objetivo compreender o papel da espiritualidade na vida de famílias que possuem um ente em situação de final de vida.
MATERIAIS E MÉTODOS
Adotou-se neste estudo a abordagem qualitativa, por meio do referencial metodológico da pesquisa exploratória e descritiva, delineamento empregado nas pesquisas em saúde com a finalidade de oferecer dados úteis para avaliação de necessidades ou intervenções, a partir de uma valiosa descrição de uma experiência8.
A pesquisa foi desenvolvida em duas unidades da rede de atenção primária à saúde de um município localizado na região centro-oeste do Estado de São Paulo, Brasil. Participaram quinze familiares de pacientes com doenças sem possibilidade de cura, com base nos critérios de inclusão: ter idade a partir de 18 anos, possuir cadastro na área de abrangência dessas unidades e possuir um ente querido em situação de final de vida. Estes familiares foram convidados pessoalmente por três pesquisadores do estudo e, buscando-se atender as normas que regulamentam as pesquisas envolvendo seres humanos9, foram informados em relação aos objetivos, procedimentos de coleta e análise de dados, garantia de sigilo, direito ao anonimato, acesso irrestrito às gravações e transcrições das entrevistas concedidas e liberdade em participar ou não da pesquisa. Não havendo dúvidas, cada participante firmou sua assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, recebendo uma cópia do mesmo.
Os quinze familiares convidados intencionalmente concordaram em participar e compuseram a amostra da pesquisa, assim constituída: onze mulheres e quatro homens, de 33 a 61 anos de idade. Deste grupo, dez se declararam católicos, quatro evangélicos e um familiar afirmou não seguir nenhuma religião, apesar de acreditar em Deus.
Os pesquisadores respeitaram o critério referente à amostra para pesquisas qualitativas, que recomenda que a seleção da mesma considere a variabilidade e o valor dos depoimentos dos participantes entrevistados10, de maneira que fosse possível identificar como a espiritualidade faz parte da vida de famílias que possuem um ente em situação de final de vida.
A coleta de dados ocorreu no período de abril de 2013 a janeiro de 2014, a partir da condução de entrevista semiestruturada, nas próprias unidades de saúde ou nos domicílios das famílias, de acordo com suas preferências. Ressalta-se que os pesquisadores que desenvolveram o estudo são da área de enfermagem, com experiência e capacitação na temática e no método escolhido.
Foram realizadas entrevistas, audiogravadas, com duração média de 35 minutos, a partir de roteiro contendo as questões: Qual o sentido que a espiritualidade tem para sua vida? Em quais aspectos a espiritualidade é importante na sua vida? Algum profissional de saúde já abordou este tema com você? Se sim, como foi? Você gostaria que a equipe de saúde conversasse com você sobre isso? Como a equipe de saúde poderia abordar esta questão durante o cuidado?
Após a transcrição literal dos depoimentos e leitura repetida e atenta, os dados foram organizados, pelos pesquisadores, conforme três etapas metodológicas da estratégia de análise do Discurso do Sujeito Coletivo10:
- Expressões-Chave (EC): Reproduções literais de fragmentos dos depoimentos dos entrevistados, possibilitando restaurar o essencial no conteúdo dos discursos;
- Ideias-Centrais (IC): Afirmações que permitem sintetizar o essencial dos discursos;
- Discurso do Sujeito Coletivo (DSC): Fragmentos de discursos individuais, construídos com base em partes essenciais dos depoimentos analisados, agrupados em um discurso-síntese, como se o grupo de entrevistados se expressasse na primeira pessoa do singular.
O rigor e a credibilidade da pesquisa foram delineados de acordo com o consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ), que norteia o processo de pesquisa e a descrição de aspectos relacionados à equipe de pesquisadores, ao desenho do estudo e à análise de dados em pesquisas qualitativas11.
Ressalta-se que o estudo respeitou às normas éticas que compõem a Resolução 466/129, do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde do Brasil e os dados foram coletados mediante aprovação do estudo e expedição de parecer favorável do Comitê de Ética e Bioética da Faculdade Marechal Rondon, que integra a Universidade Nove de Julho (Parecer de Aprovação do Estudo n. 08.2010).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise dos depoimentos possibilitou o agrupamento das IC em três temas articulados, que permitem desvelar o papel da espiritualidade de famílias que convivem com um ente em situação de final de vida, principalmente vinculada à figura de Deus. Nesse estudo, é a partir desta crença espiritual, centrada neste “ser superior” e no poder divino, que a família busca significados que justifiquem e que dêem sentido à sua experiência. Convém ressaltar que, apesar de o objetivo do estudo tenha sido desvelar a espiritualidade dessas famílias, alguns participantes mencionam a religião, por meio de orações, rituais e outras práticas, como forma de expressar sua espiritualidade.
Tema A “A percepção da espiritualidade enquanto esfera superior”
Este tema congrega as ideias-centrais: “Ser superior e religião estando presentes em tudo”, “Religião sendo importante para ensinar o certo”, “Encontrando um sentido para a vida” e “Deus determinando o que o doente e a família têm que passar”.
IC1 “Ser superior e religião estando presentes em tudo”
EC: “importante”, “presente em tudo”, “único”, “ponto fundamental”
Os entrevistados frisaram a importância da religião em todos os aspectos de suas vidas, percebendo Deus e o Espírito Santo como entidades acima de qualquer coisa, conforme ilustra o DSC 1:
É demais de importante na vida de qualquer um, em todos os aspectos...É em tudo mesmo! Eu acho muito importante conhecer o Espírito Santo, pois ele é quem está presente em tudo no dia da gente; Deus está presente na vida da gente, em todos os lugares, em todos os momentos! É o ponto fundamental...É o dono do ouro e da prata! (DSC 1)
A importância da espiritualidade na vida das pessoas vem sendo documentada como relacionada à esperança e ao fato de a pessoa estar conectada a “algo superior”5. Além disso, na cultura ocidental, a espiritualidade, expressa por meio da religião e da crença em Deus é entendida como estratégia importante para lidar com as doenças, inclusive aquelas em que a morte é iminente12.
IC 2 “Religião sendo importante para ensinar o certo”
EC: “tem que ter”, “ensinar o que é certo”
De acordo com as famílias participantes deste estudo, a religião é considerada uma diretriz de postura e conduta, admitindo como impossível o convívio humano sem este embasamento (DSC 2).
Religião todo mundo tem que ter. Como a gente vai viver sem religião? É ela que nos ensina a amar, a respeitar o próximo e a entrar em contato com Deus. Ela é importante para ensinar o que é certo. As pessoas deveriam largar de tudo: cigarro, bebida, mulherada, baile... Tem que largar para aceitar Deus no coração... (DSC 2)
Fazer o bem e evitar o mal faz parte da consciência moral existente dentro de cada ser humano. Nesse sentido, as religiões apresentam doutrinas e tradições que oferecem possibilidades para a “salvação”, por meio de caminhos para que os indivíduos se comportem de forma “correta” e “responsável” a fim de alcançarem a libertação do sofrimento2.
IC 3 “Encontrando um sentido para a vida”
EC: “todo o sentido”, “propósito na vida”
Evidencia-se, no DSC 3, que os familiares de doentes que se encontram na situação de final de vida acreditam que a expressão da espiritualidade permite percorrer o trajeto de purificação e amadurecimento, visto que possibilita compreender o sentido da vida e alcançar uma dimensão superior.
Ela (espiritualidade) nos dá todo o sentido, todo o sentido mesmo... O sentido de continuar vivendo para chegar ao Pai. Deus é tudo para que possamos entender que temos um propósito em toda nossa vida e o porquê algumas coisas acontecem com a gente. (DSC 3)
A espiritualidade desempenha um papel de produção de sentido, oferendo lógica e coerência aos acontecimentos, até mesmo, para situações como adoecimento ou morte12. De modo geral, pode minimizar o sofrimento das famílias de pacientes que vivenciam uma doença grave, visto que as necessidades espirituais são mais pronunciadas em situações de final de vida13, possibilitando-lhes a busca de significados e o crescimento pessoal14.
Nesse sentido, a literatura evidencia que a espiritualidade ajuda a conferir este significado às experiências de vida, sobretudo àquelas diretamente envolvidas com a doença e com a morte5.
IC4 “Deus determinando o que o doente e a família têm que passar”
EC: “vontade de Deus”, “sem Ele não estaríamos aqui”, “Deus é quem sabe”, “para Ele nada é impossível”
Os familiares que se encontram em uma situação de final de vida acreditam que para todos os acontecimentos há a intervenção direta de Deus. Acreditam que Ele proporciona situações difíceis para que possam se passar por um processo de constante aprendizado e superação (DSC 4).
Tudo o que nos acontece é pela vontade de Deus; se não fosse Deus, talvez ele (paciente) já teria morrido... Sem Deus não estaríamos aqui hoje. Eu faço minha parte de cuidar dele (paciente), e Deus faz a parte dele porque o que tem que ser, será. Deus nunca manda o frio se a gente não tiver a coberta para se cobrir. Em tudo é assim: se alguém passar por um problema é porque tem que passar! As enfermidades são provações... Estou assim hoje, ruim, mas Ele está fazendo a Obra; só estou vivo por causa dele! (DSC 4)
Outras situações de doenças e envelhecimento relatadas na literatura apontam que, diante de um grave diagnóstico, as pessoas podem despertar o desejo de buscar um sentido espiritual para assim compreenderem o adoecimento e a situação de final de vida5.
Ressalta-se ainda que valores, crenças e outros aspectos influenciados pela espiritualidade permitem que a pessoa compreenda os significados dos eventos como parte de um propósito de vida, fortalecendo a crença de que os acontecimentos da vida podem ser determinados por uma força superior15.
Tema B “Os benefícios da espiritualidade no enfrentamento da doença”
Este tema é representado pelas IC: “Tendo o conforto necessário”, “Encontrando forças ao ouvir e falar sobre Deus” e “Fé em Deus favorecendo a esperança de melhora”.
IC5 “Tendo o conforto necessário”
EC: “lugar em que achou respostas”, “paz”, “saúde”, “felicidade”, “proteção”, “sensação boa”
De acordo com o DSC 5, os familiares de pacientes que estão em situação de final de vida acreditam que não exista uma religião ou templo melhor que os demais e sim formas que as pessoas utilizam para conduzir sua fé ao encontro de suas necessidades espirituais, em decorrência da proximidade com a morte. Esse diálogo íntimo com Deus, independente de uma religião, proporciona conforto e bem-estar perante as dificuldades enfrentadas.
Acho que foi o lugar (centro religioso) que achei mais respostas, pois falam coisas que queremos ouvir naquele momento. Basta andar com Cristo no peito! Qualquer igreja é boa: não tem nenhuma igreja ruim. Deus é um só! Vem gente da igreja evangélica fazer oração para a vozinha aí, é sempre bem-vindo, pode vir sempre... Isso traz paz, saúde, felicidade... Muita proteção. Quando estou triste, basta pensar em Deus que a tristeza vai embora e vem uma sensação boa. (DSC 5).
Espiritualidade e religião são conceitos diferentes; a espiritualidade tem sido descrita como vital para o bem estar e conforto dos indivíduos6.
Diversas crenças, como aquelas relacionadas à espiritualidade, permeiam os cuidados profissionais, visto que ocupam um papel fundamental na vida das pessoas em relação ao enfrentamento de dificuldades do processo saúde-doença, capaz de trazer conforto e acenar para uma possibilidade de cuidado diante de doenças consideradas graves15.
A fase de final de vida vem sendo objeto de investigações nos últimos anos e é descrita como estreitamente vinculada à espiritualidade, pelo fato de o cuidado humanizado também ser capaz de proporcionar alívio do sofrimento que emerge a partir das necessidades espirituais, como em decorrência da antecipação do luto familiar3,7.
IC6 “Encontrando forças ao ouvir e falar sobre Deus”
EC: “forças”, “energia”, “atravessar o momento”, “ajuda”
Os familiares de pacientes em situação de final de vida relatam que encontram forças para enfrentar as situações difíceis dessa fase quando lhes é proporcionada a oportunidade de ouvirem e de falarem sobre Deus e espiritualidade (DSC 6).
Deus é quem de verdade dá forças para a gente. Graças a Ele que conseguimos energia para enfrentar os obstáculos que a vida coloca em nosso caminho...Vamos conseguindo atravessar um momento difícil como esse de ver minha mãe no estado em que ela está. Conversar com ela sobre Deus ajuda, pois creio que minha mãe, nesse estado, ainda acredita muito em Deus. (DSC 6).
Acreditar em Deus não significa apenas que a pessoa tenha uma religião, mas sim que é provida de uma espiritualidade, uma “força maior”, para enfrentar os desafios da vida.
Nesse sentido, a morte é uma única verdade que não se pode contestar, mesmo tendo um avanço na ciência capaz de prolongar, em certa medida, a vida. Acreditar em uma força maior diminui o sofrimento durante o processo de morrer de um ente, podendo manter o espaço envolto com paz e serenidade6.
IC7 “Fé em Deus favorecendo a esperança de melhora”
EC: “faz ter esperança”, “muita fé”, “Deus vai curar”
De acordo com o DSC 7, os familiares relatam que, independentemente da religião a ser seguida, a fé edifica a esperança de que o paciente vai se encontrar melhor, em algum momento.
Deus faz a gente ter esperança de alguma coisa... Me apego muito a Ele; não tenho uma religião definida, mas eu acredito em muita coisa, acredito em Nossa Senhora, já fui também no Centro Espírita... Só com Deus no coração seguimos em frente! A gente tem muita fé em Deus, tem no que se apega. Eu tenho fé, tenho esperança... Quem não tem fé, não para em pé! (DSC 7).
Apesar de o censo demográfico de 2010 sinalizar o crescimento da diversidade dos grupos religiosos no país, o Brasil ainda é considerado predominantemente católico16, mas ressalta-se que a crença e a fé, durante o enfrentamento de uma doença, são dirigidas a uma dimensão mais ampla, a dimensão espiritual14.
Essa fé é capaz de fortalecer as pessoas. É a base para que a vida siga seu curso, mesmo diante das dificuldades impostas pela fase de final de vida. Aliada à fé, a espiritualidade é inerente ao ser humano; é a busca de sentido para a vida, por meio de uma relação consigo mesmo, com os outros e com o divino17.
De acordo com a perspectiva da fé cristã, tem-se a certeza de que Deus é amor. Onde existe o amor, a vida e a saúde se afirmam. Assim, mesmo diante da iminência de morte, existe vida e o cuidado deve ser considerado desde o âmbito individual até o sociopolítico, manifestado pela justiça, equidade e solidariedade entre os povos2.
Tema C “A expectativa diante da postura da equipe face à espiritualidade”
Esse tema inclui as IC: “Equipe nem sempre estando disponível para tratar sobre o tema”, “Profissionais não tendo Deus no coração”, “Querendo conversar sobre espiritualidade com a equipe” e “Acreditando que a equipe deve manter a esperança do doente e da família”.
IC8 “Equipe nem sempre estando disponível para tratar sobre o tema”
EC: “é difícil tocarem no nome de Deus”, “nunca falam”, “não têm sentimento”
Apesar de reconhecerem a importância e se apegarem às questões religiosas e espirituais para o enfrentamento da situação de final de vida, os participantes deste estudo referem não ter oportunidades de conversar sobre esse assunto com a equipe de saúde.
Para as famílias, essa atitude da equipe é percebida como falta de preocupação e de sensibilidade dos profissionais mediante a difícil situação que estão vivenciando (DSC 8).
É difícil os médicos tocarem no nome de Deus, difícil... Nunca falam nada disso com a gente, nunca mesmo! Nunca ninguém falou! Não estão nem aí para a gente; é difícil eles terem sentimento pela gente... se eles quiserem conversar, a gente conversa, mas eles não falam nada, né? (DSC 8).
Cursos que preparam profissionais da saúde para lidarem com familiares e pacientes durante o processo de morrer têm resultados bastante satisfatórios. Entretanto, ainda existem instituições que não preparam os futuros profissionais para lidarem com o sofrimento e com a morte durante a graduação, em um contexto em que a espiritualidade é uma necessidade real das famílias4.
Essa problemática pode ser explicada pelo fato de existirem diferentes entendimentos para o processo de adoecimento. As ciências da saúde, incluindo a enfermagem, por serem marcadas historicamente pela objetividade, costumam desvalorizar questões subjetivas, como a espiritualidade, que o paciente e a sua família atribuem para o adoecimento e para a morte15.
IC9 “Profissionais não tendo Deus no coração”
EC: “tratam a gente mal”, “tem que ter Deus no coração”, “ter peito para andar com Cristo”
De acordo com o DSC 9, as famílias relacionam a falta de cuidado e preocupação com seus entes doentes e com elas próprias à possível ausência de fé em Deus que segue os profissionais.
Você tem que ter um caminho a seguir com Deus no coração. Tem muitos médicos e enfermeiros que tratam a gente mal... Vocês tem que ter Deus no coração também, pois ele deu a vocês o dom de tratar da gente! O difícil é ter peito para andar com Cristo! Deus está triste com eles... Eles não têm amor a Deus! (DSC 9).
Nas situações de final de vida, quando o paciente é considerado fora de possibilidades terapêuticas de cura, o papel dos profissionais de saúde sofre mudança: os cuidados mais “agressivos” dão lugar aos cuidados de final de vida, com o alívio do sofrimento do paciente e de seus familiares15.
Neste cenário de cuidado, a percepção do profissional de saúde para determinar a importância da espiritualidade para a família é de grande utilidade para que ela se sinta respeitada e para a promoção de seu bem-estar18. Neste estudo, observa-se que quando as famílias não se sentem cuidadas e bem tratadas, percebem o profissional desempenhando seu papel de modo negativo.
IC10 “Querendo conversar sobre espiritualidade com a equipe”
EC: “seria bom conversar”, “gostaria muito”, “ajudaria se o médico perguntasse”
Muitos familiares acreditam que difíceis momentos, como as idas e vindas aos hospitais para internações e avaliações do quadro clínico, situações em que a família se defronta com o prognóstico final, seja uma oportunidade para refletirem e conversarem juntamente com a equipe sobre as questões espirituais (DSC 10).
Seria bom conversar... Eu acho que sempre que conversamos sobre essas coisas, ajuda bastante a gente, em todo o momento, mas principalmente nas idas e vindas do hospital e do tratamento... Eu gostaria muito, seria bom falar de Deus, pois Deus nunca é demais! Ajudaria a gente se o médico perguntasse de Deus, falasse de Deus, da maneira que ele quiser, desde que faça a gente se sentir bem... A qualquer hora! Se me dessem uma palavra de apoio já seria tão bom... (DSC 10).
Observa-se a necessidade de os profissionais de saúde reconhecerem a importância de se considerar a espiritualidade como componente essencial dos cuidados em saúde18, principalmente porque, nessas situações, o cuidado deve ser oferecido aos pacientes e aos familiares, independente da possibilidade de cura da doença. Assim, apesar de serem constatados avanços na prestação dos cuidados paliativos, por parte de algumas equipes e instituições de saúde, não se pode negar que alguns profissionais de saúde ainda se sentem despreparados1,7, e as políticas públicas brasileiras até então se mostram incipientes e desarticuladas, prejudicando o cuidado centrado no paciente e na família15.
IC 11 “Acreditando que a equipe deve manter a esperança do doente e da família”
EC: “manter as forças para continuar”, “esperança”, “acreditar que dias melhores virão”
Os familiares acreditam que a motivação por parte dos profissionais de saúde pode e deve influenciar de forma positiva, proporcionando manter a esperança das famílias e dos pacientes.
Uma simples palavra pode nos dar uma força para continuar o tratamento; seria até um jeito mais fácil para dar forças para que a minha mãe não tivesse desistido do tratamento de quimioterapia...Teria dado mais forças para ela continuar... Eu acho que deveriam dar apoio, esperança para gente! Deviam falar para nunca deixarmos de ter fé! Falar de coisas que nos dessem força para seguir em frente até chegar a nossa hora... para nós nunca perdermos a esperança e a fé que no fim tudo dará certo! Bastar olhar no fundo dos olhos da gente e falar o quanto é importante termos fé, o quanto é bom acreditarmos que dias melhores virão... (DSC 11).
Cuidar do paciente e de seus familiares com amor e atenção sempre é um ato de solidariedade que as vezes pode levar a sobrecarga do cuidador19. A oportunidade de serem ouvidos e de verbalizarem questões sobre espiritualidade pode proporcionar força para o paciente e seus familiares manterem a esperança no sentido de acreditarem que estão sendo cuidados com dignidade e que os acontecimentos estão sendo desencadeados da melhor maneira7.
Desse modo, a espiritualidade é uma ferramenta de grande importância para a prática dos cuidados paliativos; ela promove o bem estar de pacientes que se encontram fora das possibilidades de cura e auxilia a aceitação da situação e a luta para continuar a viver, mesmo diante da morte iminente17.
Como limitação do estudo, se reconhece o fato de o roteiro da entrevista não permitir conhecer especificamente as necessidades espirituais dos familiares, o que possibilitaria traçar estratégias de cuidado espiritual de acordo com cada uma dessas necessidades. Nesse sentido, sugere-se futuros estudos que busquem elucidar quais são as necessidades espirituais de famílias com um ente querido em situação de final de vida.
CONCLUSÕES
Esta pesquisa possibilitou compreender melhor o papel da espiritualidade na vida de famílias que possuem um ente no final da vida. A contribuição do estudo reside na constatação de que as famílias participantes não desvalorizam o papel dos profissionais de saúde, mas encontram na espiritualidade um conforto único diante do sofrimento imposto pela terminalidade da vida. Com base nisso, os profissionais devem reconhecer a espiritualidade como uma ferramenta valiosa para o seu trabalho de ajudar as famílias a se sentirem encorajadas diante dessa situação.
Contudo, evidenciou-se que essas famílias não encontram espaço para a expressão dessas questões com os profissionais da equipe da Atenção Primária à Saúde, com quem deveriam apresentar vínculo e corresponsabilidade sobre o cuidado pautado pela integralidade, principalmente em relação ao enfermeiro, que apresenta maior proximidade à família no desempenho de seu cuidado.
É fundamental que os profissionais de saúde incorporem conhecimentos de outras disciplinas, para subsidiar os cuidados paliativos no contexto comunitário, reconhecendo a espiritualidade como elemento fortalecedor da família.
Conflito de Interesse: Os autores declaram que não houve conflito de interesse.
REFERÊNCIAS